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Desligar a criança para poupar o adulto

Desligar a criança para poupar o adulto


Fonte original: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1wv79vzm5no

#maispertodaignorancia

“O que revela mais sobre nós: o tempo de tela das crianças ou o tempo que não temos para elas?”

Aparentemente, é sobre tablets. Mas na superfície lisa das telas, refletimos não apenas o rosto das crianças, mas a abdicação adulta. A matéria da BBC News Brasil questiona, com razoável equilíbrio, se o tempo de exposição às telas afeta o cérebro infantil — porém, o que ela revela sem dizer é talvez mais incômodo: estamos desesperadamente querendo delegar à ciência uma resposta que nos exima do olhar.

É sempre mais fácil medir o tempo do que sustentar a presença. E é nesse gesto — entre a vigilância digital e o abandono elegante — que revelamos o verdadeiro problema: não é que as telas causem o vazio, elas apenas o ocupam.

I. O sintoma que culpamos: moral de tela e ausência de elaboração

A ciência é cautelosa. Estudos como o Adolescent Brain Cognitive Development Study nos mostram correlações, mas não determinismos: há alguma relação entre tempo de tela e atrasos cognitivos? Talvez. Há evidência clara e direta? Não. Mas o que nos angustia, de fato, é essa ausência de clareza — porque ela nos devolve ao território da responsabilidade subjetiva.

Byung-Chul Han afirma, em A expulsão do outro, que vivemos numa era onde a alteridade é eliminada em nome da eficiência. A criança, com seus excessos, seus tempos lentos e suas perguntas sem produtividade, se tornou um empecilho à lógica do desempenho adulto. Delegar sua educação a tablets e algoritmos é uma forma sutil de silenciamento — higienizado, progressista, mas ainda assim uma expulsão.

André Green já alertava que o narcisismo de morte se instala quando o outro não é reconhecido como sujeito, mas como extensão. A tela se torna a mãe silenciosa, o pai pré-programado, o educador despersonalizado — e, no fundo, a própria criança se converte em dado.

II. O gozo moral e a terceirização do vínculo

Freud, ao tratar do mal-estar na civilização, já antecipava o que agora chamamos de “cansaço digital”: a pulsão de controle social mascarada de cuidado. A tentativa de definir um “tempo saudável de tela” opera menos como proteção e mais como moralização de costumes. É a velha estrutura do superego, mas agora travestida de “neurociência acessível”.

O que está em jogo não é se dois ou três episódios de desenhos prejudicam o córtex pré-frontal. A pergunta real seria: o que esse tempo de tela está substituindo? A ausência dos pais? A falta de escuta? A precarização da infância diante de um mundo hiperprodutivo?

Zygmunt Bauman, em 44 cartas do mundo líquido moderno, dizia que terceirizamos o vínculo — transformamos a educação em serviço, o cuidado em aplicativo, o amor em planejamento. Quando a parentalidade vira projeto de consumo e a subjetividade infantil é gerida por tutoriais de TikTok, o que temos é uma infância funcional: bem comportada, mas desabitada.

III. Dados ou desculpas? A ciência no banco dos réus da culpa adulta

Os dados são sempre convocados quando há culpa demais e escuta de menos. Segundo pesquisa de 2023 publicada na Nature Human Behaviour, crianças que passam mais de quatro horas por dia diante de telas tendem a ter menor desempenho em testes de linguagem e memória. No entanto, esses mesmos dados se correlacionam com baixa renda, pouca escolaridade parental e ausência de mediação afetiva — variáveis que raramente entram nos noticiários como causa real.

Shoshana Zuboff, em A era do capitalismo de vigilância, mostra como o design algorítmico das plataformas não é neutro: ele é construído para capturar atenção, não para promover aprendizado. Deixar uma criança sozinha com um dispositivo é colocá-la em contato com uma indústria que simula interesse, mas não oferece alteridade real. A atenção que ela recebe é artificial — e isso, mais do que o tempo, é o que configura o dano.

Ernest Becker, em A negação da morte, já dizia: a angústia não está na tela, mas na finitude que ela mascara. Substituímos a escuta difícil pela distração fácil, a convivência pela ocupação. Fingimos estar protegendo as crianças do excesso de estímulo, quando na verdade estamos protegendo a nós mesmos da demanda de presença.

IV. Entre o delírio da cura e a renúncia da elaboração

Søren Kierkegaard, em O conceito de angústia, apresenta a angústia como a experiência da liberdade diante da possibilidade. A tela, nesse contexto, é a antítese da angústia: ela oferece ocupação constante, fuga permanente, ausência de escolha. A criança não encara o tédio, a solidão, a espera — porque o mundo digital preenche todos os vazios com dopamina.

Mas talvez o maior dano não esteja na neuroquímica, e sim na falência simbólica: a infância perde o espaço do “não saber”, da descoberta, do erro. Tudo é tutorial, tudo é pré-editado. Não há mais tempo para elaborar, apenas para consumir. O algoritmo oferece resposta sem pergunta, jogo sem invenção, narrativa sem história.

E os adultos, por sua vez, se escondem nesse excesso de respostas. Não há tempo — ou coragem — para elaborar o silêncio, a dúvida, a presença não performática. É mais fácil medir a tela do que sustentar o olhar. É mais cômodo limitar o tempo do que reconstruir o vínculo.

E então? Queremos limitar o tempo de tela ou reaprender a escutar o tempo da infância?

A matéria da BBC termina sem resposta clara — mas talvez ela nunca tenha sido o foco. O desconforto permanece, como deve ser. Porque o que está em jogo não é uma solução, mas uma escolha: queremos filhos que performam bem ou sujeitos que suportem a própria incompletude?

Enquanto a ciência mede o tempo, a subjetividade escapa. E talvez o maior risco não esteja na tela, mas na ausência que ela cobre.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.

HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2017.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2017.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

BBC News Brasil. Tempo de tela: por que entender o que exposição às telas faz com o cérebro das crianças é mais complicado do que parece. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1wv79vzm5no. Acesso em: 02 ago. 2025.

Nota sobre o autor

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.

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Palavras-chave:

tempo de tela, infância, abandono parental, presença, vigilância digital, narcisismo, subjetividade, algoritmo, cuidado, angústia, silêncio, responsabilidade

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