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Desconectar-se para continuar rendendo?A dissimulação neoliberal da saúde mental no Brasil hiperdigitalizado

Desconectar-se para continuar rendendo?
A dissimulação neoliberal da saúde mental no Brasil hiperdigitalizado


Fonte original: https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2025/08/leitores-citam-motivos-para-diminuir-uso-de-redes-sociais.shtml

#maispertodaignorancia

RESUMO

O presente artigo propõe uma leitura crítica da “moda” contemporânea da desconexão digital, abordando suas implicações psíquicas, sociais e econômicas no contexto brasileiro. A partir de uma articulação entre autores como Freud, Bauman, Han, André Green e Zuboff, e dados recentes de instituições como IBOPE, Fiocruz e IPEA, investigamos como o suposto gesto de "liberdade" em sair das redes sociais pode estar profundamente imbricado em novas formas de sujeição simbólica e mercantilização do sofrimento. Ao invés de resistência, observamos uma reconfiguração do mal-estar adaptado às exigências da performance e da visibilidade neoliberal. A análise é conduzida sob o viés do projeto “Mais Perto da Ignorância”, que propõe tensionar os discursos hegemônicos sobre saúde mental, autocuidado e tecnologia.
Palavras-chave: exaustão digital, neoliberalismo, psicanálise, economia da atenção, narcisismo, saúde mental, desconexão.


1. Introdução

Em 2025, o Brasil hiperconectado assiste ao crescimento de um novo comportamento: a retirada simbólica das redes sociais por parte de sujeitos saturados. Longe de ser um gesto de desobediência tecnológica, tal desconexão revela um paradoxo ainda mais profundo: o desejo de escapar para continuar rendendo. Ao analisarmos matérias como a da Folha de S.Paulo (2025), percebemos como a linguagem da saúde mental tornou-se território de captura e não de emancipação. Como propõe Byung-Chul Han (2021), vivemos sob o regime da positividade tóxica, onde até o cansaço virou um capital.


2. A performatividade do sofrimento e o novo mercado do cansaço

O IBOPE (2024) apontou que 78% dos brasileiros relataram exaustão mental relacionada ao uso de redes sociais. A estatística, porém, esconde o que ela revela: a transformação da exaustão em estética e do sofrimento em performance. Como alertava Han (2015), a sociedade do desempenho é autovigilante — ela produz sujeitos que não precisam de opressores, pois já incorporaram a função de vigilância em si. O “detox digital” deixa de ser um ato político e torna-se um produto: aplicativos de meditação, influencers do autocuidado, retiros online com agendamento prévio.
Freud (1930), ao falar do mal-estar na civilização, já previa que a repressão do instinto não desaparece — ela se desloca. A "cura" prometida pela desconexão nada mais é que a manutenção do sintoma em novas roupagens. A lógica da mercadoria se apropria até do silêncio: o cansaço é brand, o esgotamento é conteúdo.


3. O inconsciente virou feed: o algoritmo como novo superego

Zuboff (2020) conceitua a “economia do comportamento preditivo” ao mostrar que, mesmo offline, o sujeito continua sendo monetizado. O que não é dito — os silêncios, os tempos sem postagem, os sumiços — vira dado. O inconsciente digital é como o freudiano: pulsional, insistente, atemporal. O algoritmo não esquece; ele repete. E na repetição, nos captura.
Freud (1901) já dizia que os atos falhos e os esquecimentos têm sentido. Na era digital, o sumiço também significa. O sujeito que se desconecta não escapa da máquina, apenas alimenta outro tipo de métrica. Seu silêncio é clamoroso, sua ausência é uma nova forma de presença.


4. Narcisismo, morte e desejo de invisibilidade

André Green (1993) distingue o narcisismo de vida — voltado à construção simbólica do eu — do narcisismo de morte, onde o sujeito deseja apagar-se. Muitos discursos sobre “limpar a timeline” ou “excluir o Instagram” ressoam esse desejo de apagar-se do olhar do outro. Mas o que se busca não é o fim da visibilidade, e sim a estética do desaparecimento.
Bauman (2013) alerta para o horror dos vínculos duradouros. Vivemos relações líquidas, voláteis, onde até a ausência precisa ser convertida em espetáculo. A desconexão é mais uma vitrine: o sujeito se retira para que notem sua ausência, para que sintam falta, para que desejem sua volta. O capitalismo, inclusive o afetivo, lucra com isso.


5. Da escuta ao slogan: a captura mercadológica da saúde mental

Segundo a Fiocruz (2023), a prescrição de psicofármacos aumentou 34% entre usuários diagnosticados com exaustão digital. Ao invés de escuta, há automatização. Ao invés de clínica, há chatbot. A dor do sujeito virou um nicho. Dalgalarrondo (2008) já denunciava esse movimento: a medicalização da existência converte singularidade em categoria, sofrimento em algoritmo.
Terapias instantâneas, influencers da cura, slogans como “autocuidado é resistência”: o discurso terapêutico virou estética. A saúde mental se divorcia da clínica para se tornar campanha. O terapeuta vira marca. O paciente, lead.


6. Economia da visibilidade: o capital simbólico da presença

O IPEA (2024) revelou que 63% dos trabalhadores informais utilizam redes como meio de sustento. Isso significa que a “desconexão” é uma prática de classe. Só se desconecta quem pode bancar o privilégio do apagamento. Marx (1867) já advertia: a liberdade do sujeito é a liberdade de vender-se — e hoje o produto é sua imagem.
Deslogar não é gesto neutro. É, muitas vezes, uma renúncia econômica. A saúde mental, nesse cenário, torna-se também um ativo de mercado: quem cuida de si, rende mais; quem se afasta, descansa para voltar. O descanso não é fim, é recurso.


7. Considerações finais (sem final)

A saída das redes pode parecer um gesto de autonomia. Mas, em sua maioria, é apenas uma pausa entre ciclos de exposição. O sujeito não sai: ele se prepara para voltar melhor, mais “zen”, mais estratégico. O algoritmo agradece.
A desconexão contemporânea não rompe com o sistema — ela o alimenta com um novo tipo de energia: o silêncio performado. E o cansaço que deveria ser denúncia virou métrica de engajamento.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

DALGALARRONDO, Paulo. Religião, Psicopatologia e Saúde Mental. Porto Alegre: Artmed, 2008.
FIOCRUZ. Boletim de Saúde Mental Digital. Rio de Janeiro: 2023.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, v. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. Obras completas, v. 6. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

IBOPE. Relatório Nacional de Saúde Digital. São Paulo: 2024.

IPEA. Informalidade e economia digital no Brasil. Brasília: 2024.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Nota sobre o autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Atua na intersecção entre psicanálise, tecnologia e crítica social.

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Palavras-chave:

exaustão digital, narcisismo, burnout, algoritmo, visibilidade, silêncio, desconexão, vigilância, sofrimento, capitalismo afetivo

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