Avançar para o conteúdo principal

Crianças em Vitrine: Adultização, Narcisismo e a Farsa da Proteção

Crianças em Vitrine: Adultização, Narcisismo e a Farsa da Proteção




Fonte 👇 
https://www.cartacapital.com.br/politica/cpi-sobre-a-adultizacao-reune-rara-frente-ampla-no-senado-federal/
 
#maispertodaignorancia

No Brasil, a recente formação de uma frente ampla no Senado Federal para instaurar uma CPI contra a “adultização” de crianças nas redes sociais revela mais sobre nossa cultura do que aparenta. Sessenta senadores, de partidos tão díspares quanto entre os seus, uniram-se em torno de um tema que, em teoria, deveria suscitar um debate profundo sobre os mecanismos sociotécnicos que moldam a infância. 

Mas, como aponta Christopher Lasch (2019), vivemos em uma era em que a política se confunde com espetáculo e onde “toda política se tornou uma forma de espetáculo” — e o espetáculo é movido por capital de atenção.

O fenômeno não é novo. Muito antes da internet, a exposição infantil já era prática corrente na publicidade, na televisão e em eventos públicos, naturalizando a violação do espaço privado. 
A diferença contemporânea é que, com as redes sociais, a vitrine é onipresente e a performance é contínua, transformando crianças em microcelebridades, alimentando um mercado de dados e visibilidade.

Aqui, André Green (1988) nos ajuda a compreender a lógica psíquica: o “falso self” emerge quando o sujeito molda sua expressão para corresponder às expectativas do outro, suprimindo o “self verdadeiro” e comprometendo a integridade emocional.


No plano social, como lembra Zygmunt Bauman (2008), vivemos em uma “sociedade individualizada” que desloca para o indivíduo a responsabilidade por problemas estruturais.
Assim, a exposição infantil é tratada como falha parental isolada, quando na verdade está inscrita em uma engrenagem mercadológica que incentiva e recompensa essa prática. Essa privatização da culpa oculta que a arquitetura das plataformas digitais é projetada para maximizar engajamento, utilizando algoritmos que amplificam conteúdos emocionalmente carregados — e a imagem de uma criança é, indiscutivelmente, um desses gatilhos.

No contexto brasileiro, a CPI surge como reação a um gatilho midiático — o vídeo do youtuber Felipe Bressanim, com mais de 31 milhões de visualizações — mas pouco se fala sobre a ausência histórica de políticas públicas eficazes de alfabetização midiática e de proteção digital.

Segundo dados do CGI.br (2024), 72% das crianças e adolescentes brasileiros acessam a internet sem supervisão adequada, e o índice de analfabetismo funcional digital entre adultos responsáveis permanece alto. Esse cenário, combinado à monetização do afeto e à lógica de “visibilidade como valor”, cria o ambiente perfeito para a perpetuação do problema.

A “adultização” não é apenas antecipar comportamentos adultos em crianças; é também, como apontam Lasch e Bauman, infantilizar adultos ao reduzir sua capacidade crítica e transferir-lhes responsabilidades impossíveis sem fornecer recursos adequados. 
É transformar a vida em performance, não em experiência — e, como alertava Green, é sustentar um narcisismo mortífero que mina vínculos autênticos e substitui a intimidade por encenação.

O combate real à exposição e à adultização de crianças exige mais do que CPIs: requer enfrentar a economia da atenção, regulamentar plataformas digitais com foco na proteção integral, implementar políticas públicas de educação midiática e, sobretudo, abandonar a confortável ilusão de que a responsabilidade é exclusivamente individual.
Sem isso, a CPI corre o risco de ser apenas mais um ato no teatro político que Lasch tão bem descreveu: espetáculo sem transformação.


REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana em uma era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). TIC Kids Online Brasil 2024. São Paulo: CGI.br, 2024.


NOTA DO AUTOR

O presente texto integra a estética discursiva do projeto “Mais Perto da Ignorância”, articulando análise acadêmica, crítica cultural e reflexão psicanalítica para tensionar narrativas sobre infância, tecnologia e mercado.

PALAVRAS-CHAVE

adultização, narcisismo, falso self, exposição infantil, mercado de atenção, Brasil, psicanálise, mídia digital, política pública

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...