Criança Plugada, Adulto Desligado
Fonte original:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/08/4-em-cada-10-dizem-que-criancas-tem-muito-tempo-de-tela.shtml
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Quatro em cada dez brasileiros acham que crianças estão tempo demais em frente às telas. O restante, ao que tudo indica, está ocupado demais... em frente às suas próprias. A matéria da Folha sugere uma preocupação parental crescente com a "exposição excessiva" das crianças a celulares, tablets e afins. Mas o que não se diz? Talvez o mais óbvio: o problema não está na tela da criança, mas na cegueira do adulto.
Como apontou Bauman em 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, os pais perderam o monopólio simbólico sobre a autoridade — foram substituídos por algoritmos de entretenimento e apps de babysitting emocional. A crise não é da infância: é da adultez colapsada que terceiriza o afeto, a escuta e o tédio.
A “preocupação” com o tempo de tela revela mais sobre o desconforto adulto com o próprio espelho digital do que sobre as crianças em si. Afinal, qual modelo de subjetividade se oferece à infância, quando os adultos performam vidas em carrosséis de stories, substituem conflitos por emojis e projetam suas próprias carências em telas alheias? A ansiedade de controle se disfarça de cuidado. A vigilância parental, de virtude. O que há, no fundo, é uma infância sitiada por um narcisismo adulto que não suporta o silêncio.
Segundo Freud, em O Mal-Estar na Civilização, a renúncia pulsional é o preço da vida em sociedade. Mas o que fazemos hoje é diferente: ao invés de renunciar, deslocamos. A tela infantil serve de canal para o recalque do mal-estar adulto, transferido como fardo às próximas gerações. André Green, ao teorizar sobre o narcisismo de morte, já apontava a falência do outro enquanto espelho simbólico. A criança digital não vê um adulto, mas uma projeção pixelada de um ego em decomposição.
Não se trata apenas de exposição, mas de formação. Uma subjetividade moldada em microvídeos e tutoriais de TikTok não é uma aberração: é o produto coerente de uma sociedade que terceiriza a construção do superego para o YouTube Kids. Como lembra Zuboff, no capitalismo de vigilância não há mais inocência: há dados. E cada clique infantil é uma nova linha no Big Data da infância capturada.
Enquanto isso, fingimos nos importar. Realizamos pesquisas de opinião. Debatemos regulamentações. Ignoramos o fato de que mais de 60% das crianças brasileiras têm acesso à internet apenas por celular — geralmente o da mãe, usado entre uma jornada e outra de trabalho precarizado. A tela é a babá. O algoritmo, o pedagogo.
Bauman já antecipava: a liquidez das relações dissolveu o tempo partilhado. O adulto que julga o tempo da criança está, na verdade, tentando colonizar um tempo que já perdeu. A infância se tornou um problema técnico a ser resolvido com filtros parentais, notificações limitadas e relatórios de uso. E o afeto? Deixamos nas mãos de um YouTuber de 19 anos que ensina a ser “um mini empreendedor mirim com 7 anos de idade”.
O que há por trás da denúncia contra o tempo de tela é a denúncia de um tempo que não se sustenta. Não é que a criança esteja demais na tela. É que o adulto está de menos na vida. A alienação foi institucionalizada — agora tem plano de dados, modo noturno e cashback.
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Referências
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”. Escreve com o estômago. E com o tempo ferido.
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tela, infância, narcisismo, algoritmo, vigilância, afeto, subjetividade, superego, liquidez, cuidado, omissão, babá digital, dados, alienação, consumo, adultocentrismo.
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