Borderline: o manual de instruções do vazio que a psiquiatria insiste em preencher com diagnósticos prontos
Borderline: o manual de instruções do vazio que a psiquiatria insiste em preencher com diagnósticos prontos
#maispertodaignorancia
O texto do Terra apresenta o borderline como uma lista de sintomas, quase um cardápio clínico de angústias: medo de abandono, instabilidade, impulsividade, vazio, raiva descontrolada. Tudo enumerado, esquadrinhado, como se a dor humana fosse uma coleção de itens a serem marcados em um questionário. Eis o triunfo da biopolítica: transformar a subjetividade em checklist. O sujeito que sangra é traduzido em sintoma; o sujeito que não cabe é reorganizado em critérios diagnósticos.
A narrativa médica, ainda que necessária, carrega uma ironia cruel: o diagnóstico promete nomear o sofrimento, mas ao nomeá-lo, captura-o em grades conceituais. Freud já nos lembrava que não há cura para a condição de ser humano; há apenas manejos possíveis do mal-estar. Mas na sociedade do desempenho (Han), até o sofrimento precisa ser eficiente, classificado e rapidamente encaminhado para psicoterapia ― desde que adaptada ao ritmo da produtividade.
Se o texto afirma que o borderline se revela sobretudo na juventude, não é coincidência. É nesse intervalo biográfico que as redes sociais e a maquinaria tecnológica instalam seus altares: um feed de abandonos e idealizações instantâneas, onde cada curtida pode ser vivida como êxtase e cada silêncio como condenação. A “instabilidade afetiva” torna-se menos patologia e mais reflexo da arquitetura digital que captura a psique e a vende em métricas de engajamento (Zuboff).
O risco maior não é apenas o suicídio estatístico, mas a transformação da experiência trágica em mercadoria psiquiátrica. O borderline se converte em etiqueta identitária, em discurso de pertença e até em trend. Entre diagnósticos tardios e tratamentos padronizados, corre-se o risco de normalizar a patologização do desajuste, esquecendo que ele também é denúncia contra um mundo que exige estabilidade impossível, relações sem falhas e um “eu” sem fissuras.
Referências:
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
TERRA. Borderline: primeiros sinais e como identificar a condição. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude-mental/borderline-primeiros-sinais-e-como-identificar-a-condicao,f844fa6737c2d5a315ff22adfd2eab16run2y13k.html. Acesso em: 24 ago. 2025.
Notas do autor
O diagnóstico é ferramenta, não destino. A ironia é que, ao mesmo tempo em que promete clareza, reforça a precariedade de quem busca respostas. O borderline é menos “doença” e mais sintoma de uma cultura que não tolera fissuras, mas vive delas.
Palavras-chave
Borderline; Psiquiatria; Capitalismo de vigilância; Instabilidade afetiva; Sociedade do desempenho.
Fonte inicial da discussão:
https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude-mental/borderline-primeiros-sinais-e-como-identificar-a-condicao,f844fa6737c2d5a315ff22adfd2eab16run2y13k.html
24/08/2025
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