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A inteligência que desliga o humano

A inteligência que desliga o humano
🔗 Fonte original: Fast Company Brasil – Nicolelis critica hype da IA

#maispertodaignorancia

Você confiaria sua angústia a um algoritmo?
Ou melhor: quem ganha com a ideia de que o sofrimento pode ser deletado com uma linha de código? O entusiasmo com a inteligência artificial, tão frenético quanto dogmático, revela menos um avanço da razão e mais um pânico da finitude. O que Miguel Nicolelis denuncia não é a IA em si, mas o projeto psíquico por trás dela: apagar a fragilidade, higienizar o erro, automatizar a dúvida.


1. Um fetiche chamado algoritmo

Nicolelis, neurologista e herege honorário do tecnocapitalismo, rompe com o otimismo pasteurizado das startups. Enquanto CEOs prometem cérebros em nuvem, ele insiste na intransferível densidade do corpo, na inteligência encarnada, no pensamento como sintoma — e não como sistema. Em tempos de adoração algorítmica, esse gesto é revolucionário: ele lembra que só pensa quem sente.

A cultura do Vale do Silício — com seus mantras de disrupção, escalabilidade e eficiência — não quer pensar o real, quer gerenciá-lo. O delírio não é tecnológico, é estrutural: a ideia de que tudo pode ser transformado em dado, inclusive o desejo. Como alerta Byung-Chul Han, vivemos sob o império da positividade performativa: tudo deve ser transparente, produtivo, otimizável (HAN, 2017). A IA encaixa-se perfeitamente nesse modelo, pois promete eliminar aquilo que mais nos constitui: o incômodo.


2. Narcisismo de código: entre controle e apagamento

André Green, ao falar do narcisismo de morte, já intuía o risco de uma subjetividade que, diante do excesso, implode — não por fraqueza, mas por defesa. O que vemos no fascínio com a IA é justamente essa pulsão de desligamento: queremos um eu sem resto, uma mente sem sintomas, um mundo sem falha. A inteligência artificial, nessa chave, aparece como o instrumento perfeito para apagar a alteridade — interna e externa.

Freud também nos ajuda aqui. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), ele aponta que o progresso técnico não reduz o sofrimento, apenas o desloca. Substituímos o medo do tigre pelo medo da demissão, o frio pela ansiedade de desempenho. Agora, substituímos a dúvida pela predição. Mas o inconsciente não obedece à lógica do machine learning. Ele hesita, sabota, repete.

E ao contrário do que vendem os discursos do Vale, inteligência não é sinônimo de antecipação. Pensar é suportar o que não se sabe. Desejar é não saber exatamente o que se quer. O que a IA elimina não é apenas o erro — é a experiência de desejar.


3. A máquina como moral

O fetiche da IA não é técnico: é moral. Nicolelis, ao afirmar que “só o cérebro humano pode pensar o que ainda não existe”, denuncia a amputação do imprevisível — ou melhor, sua criminalização. Vivemos a moral da performance plena, da positividade tóxica, do “sem erro”. Uma moral onde a hesitação vira falha, a pausa vira ineficiência, o cansaço vira defeito de fábrica.

Zygmunt Bauman descreve esse cenário como a transição da solidez para a fluidez (BAUMAN, 2001). Agora, adicionamos a evaporação da própria interioridade. A subjetividade líquida tornou-se plugável, monetizável, deletável. As relações — com os outros e consigo — seguem o mesmo fluxo: quando um vínculo adoece, aperta-se “delete”. Quando o corpo falha, recorre-se a nootrópicos, biohacks, dispositivos de produtividade. O real, quando escapa, é interpretado como bug — nunca como sintoma.


4. Dados não choram

Segundo dados da Agência Pública, entre 2020 e 2024, o investimento global em IA cresceu 145%, enquanto os índices de sofrimento psíquico também subiram — 34% de aumento em diagnósticos de transtornos de ansiedade no Brasil segundo o IPEA. A conexão é evidente: quanto mais prometemos controle, mais cresce o descontrole. Quanto mais idealizamos uma mente limpa, mais a alma se suja.

A inteligência artificial não chora. Mas também não ri, não sonha, não hesita. Não sabe o que é perder. E é justamente nesse não-saber que nos tornamos humanos. Zuboff (2019) já alertava: a economia da vigilância não busca apenas prever comportamentos, mas moldá-los. Nicolelis denuncia o mesmo: a IA não é apenas tecnologia — é projeto civilizatório. Um projeto que elimina o sujeito para salvar o sistema.


Epílogo (in)acabado

O problema não é a IA. É o culto. O culto à ilusão de que podemos viver sem angústia, sem falha, sem pausa. Nicolelis, nesse cenário, não é tecnofóbico. É clínico. E o que ele diagnostica é uma sociedade em negação delirante do humano.

Se o delírio é tecnológico, o remédio não é técnico. É simbólico. É político. É ético. E, sobretudo, é trágico. Porque só quem suporta o inacabado é capaz de pensar o que ainda não existe.


Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2010.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

IPEA. Indicadores de saúde mental no Brasil, 2024.

AGÊNCIA PÚBLICA. Dados sobre investimentos em IA no Brasil, 2024.


Nota sobre o autor

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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Palavras-chave
inteligência artificial, narcisismo de morte, Nicolelis, Zuboff, performance, subjetividade, automação, sintoma, tecnologia, Byung-Chul Han, angústia lúcida, controle algorítmico, crítica cultural,
 
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