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A Indústria do Bem e a Política da Anestesia: O Mal como Sintoma Psicossocial Brasileiro

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Resumo

Neste artigo, proponho uma análise psicossocial da forma como o "bem" tem sido instrumentalizado na cultura contemporânea brasileira. Parto de vivências clínicas, inquietações pessoais e leituras que tensionam a performatividade emocional e a mercantilização da ética. A tese central é que o Mal perdeu sua face espetacular e se traveste de cuidado algorítmico, empatia publicitária e positividade compulsória. Dialogando com Freud, Bauman, Han, Cioran e Zuboff, argumento que a dor foi silenciosamente convertida em falha individual — e que preservar o desconforto é um ato ético.


Palavras-chave: subjetividade, sofrimento, vigilância emocional, indústria do bem, crítica psicossocial.


1. Introdução


Sou psicólogo clínico e, antes de qualquer rótulo, sujeito atravessado por contradições e afetos em conflito. Este artigo nasceu de incômodos que se repetem no consultório, nas ruas, nas redes. Parece haver uma política da anestesia em curso — uma estratégia civilizatória que silencia o sofrimento e converte a angústia em dado. O bem, nesse contexto, tornou-se produto. E o Mal, paradoxalmente, virou rotina funcional.


2. O Sofrimento Como Falha de Performance


No discurso neoliberal, sofrimento não é expressão humana: é mau desempenho. A clínica mostra que muitos sujeitos hoje se sentem culpados por não se sentirem bem — como se o sofrimento traísse um contrato invisível de felicidade obrigatória. Essa lógica é cruel e sorridente, ao estilo Byung-Chul Han: esvaziada de conflito, repleta de likes e recompensas emocionais.

> Nota do autor: Já escutei pacientes dizerem que se sentem inúteis por estarem tristes. O problema não é a tristeza — é o sistema que exige performance emocional 24/7.

3. Empatia Algorítmica e Capitalismo de Vigilância


Zuboff (2020) descreve como nossas emoções são mapeadas, comercializadas e antecipadas por sistemas de vigilância digital. A empatia virou recurso de interface: bots que dizem "sentimos muito por sua perda", banners que oferecem "abraços digitais" e métricas que valorizam a resiliência emocional.

> Nota do autor: Não é coincidência que o feed entregue mais positividade quando estou irritado. O algoritmo zela pela harmonia do capital, não pela verdade afetiva.


4. A Banalidade do Mal e a Estética do Sucesso


Hannah Arendt (1999) já alertava sobre o Mal como burocracia desumana. Hoje, esse Mal se apresenta como métrica, planilha, KPI emocional. Não há monstros — há gestores da dor, há influencers que ensinam como “sofrer com leveza”. A dor não precisa mais ser negada: ela foi reconfigurada como conteúdo útil.


5. O Mercado da Dor e o Branding da Esperança


Cioran escreveu que “quanto menos sentido há, mais se fala de esperança.” O mercado entendeu essa lógica e montou uma indústria de superação, espiritualidade plug-and-play e jornadas de autocura gamificadas. Tudo isso embalado em discursos de autenticidade, vulnerabilidade estratégica e storytelling.

> Nota do autor: A esperança virou slogan. A autenticidade virou técnica. A dor virou empreendedorismo afetivo.


6. Subjetividade e Precarização das Relações Humanas


A precarização não se limita à economia — ela atinge as relações. Há uma urgência por vínculos rápidos, funcionais e performáticos. O outro tornou-se espelho de validação. A escuta empática cedeu espaço à comunicação eficiente. O tempo de acolhimento foi substituído por fluxos de atenção intermitente.

Freud e André Green ajudam a entender esse deslocamento: o sujeito contemporâneo perdeu espaço para elaborar, perdeu tempo para sofrer. E onde não há elaboração, há automatismo psíquico.


7. A Indústria do Bem como Sintoma


O discurso do bem é, muitas vezes, uma estratégia de domesticação. Ele se apresenta como ética, mas opera como controle. A positividade excessiva sufoca o pensamento crítico; a empatia performática inibe o desconforto legítimo. O resultado é um sujeito anestesiado — que consome slogans de equilíbrio enquanto desmorona em silêncio.

> Nota do autor: Produzo conteúdo que incomoda. Porque a dor não cabe em posts motivacionais. Porque a angústia pede escuta, não conselho.


8. Lucidez como Ato Ético e Estético


Conservo a ideia de que a lucidez é um gesto ético. Em tempos de apatia elegante e dopamina algoritmizada, pensar — mesmo que doa — é resistência. Preservar o desconforto é desafiar o ideal normativo do sujeito resiliente, produtivo, sorridente. A lucidez perturba, expõe e liberta.

> Nota do autor: Mais perto da ignorância, talvez mais perto da verdade. Não porque a ignorância é boa, mas porque ela revela os limites do saber domesticado.

9. Conclusão


Escrevi este artigo como quem caminha contra a maré. Não trago soluções — trago perguntas. O sofrimento não é problema a ser resolvido, mas expressão a ser escutada. Na clínica, nas redes, nas ruas, o Mal se traveste de cuidado e o bem se torna instrumento de silenciamento. Preservar o desconforto é preservar o humano. E se isso incomoda, talvez seja sinal de que ainda estamos vivos.

Referências:

- ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, 1999. 


- BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Zahar, 2007. 


- BYUNG-CHUL HAN. A sociedade da transparência. Vozes, 2015. 


- CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rocco, 2005. 


- FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Imago, 2010. 


- GREEN, André. A clínica psicanalítica. Martins Fontes, 2004. 


- MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo, 2011. 


- ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Intrínseca, 2020.

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