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Zuckerberg falou. O Brasil não ouviu.

Zuckerberg falou. O Brasil não ouviu.




Subtítulo: Quando a superinteligência encontra o subacesso: a utopia digital que não atravessa a BR-116.

Mark Zuckerberg lançou uma carta ao futuro — ou, para ser mais preciso, a uma bolha de leitores plenamente conectados, bilíngues, tecnofílicos e capitalizados. Nela, o CEO da Meta anuncia que a superinteligência artificial está batendo à nossa porta, como um missionário iluminado que oferece progresso em bytes. Mas, em que porta, exatamente, ela está batendo?

Vamos aos dados que Zuckerberg não cita:

Indicador

Valor

Taxa de analfabetismo funcional (Brasil, 2023)

29% (população adulta)

Taxa de analfabetismo digital (Brasil, 2023)

41% (população ≥ 15 anos)

População sem acesso à internet

32 milhões de pessoas

População com acesso à internet apenas via celular

53% dos usuários de baixa renda

IDH médio por região (Norte/Nordeste vs Sudeste)

0,68 / 0,85

Investimento público em inclusão digital (2024)

R$ 4,2 bilhões (queda de 12% em relação a 2023)

Percentual de escolas públicas com acesso pleno à internet

27% (com acesso funcional e banda larga)

No mesmo país onde quase um terço da população adulta não compreende o que lê, e onde mais de 40% da população não domina ferramentas digitais básicas, o delírio tecnocrático da Meta soa como drone em lavoura sem rede: barulhento, caro e inútil.

A superinteligência é anunciada como um avanço universal. Mas os dados acima mostram que ela se materializa como mais uma camada de exclusão para os que já foram sistematicamente deixados à margem do acesso — seja por infraestrutura, educação ou simplesmente prioridade política.

Bauman já havia nos advertido que a modernidade técnica não hesita em sacrificar os inadaptáveis. Ortega y Gasset, por sua vez, diria que o especialista digital de hoje é o novo bárbaro: conhece profundamente os códigos, mas ignora o mundo que esses códigos moldam. Em outras palavras, o discurso de Zuckerberg não mente — ele apenas se dirige a um público que vive em outro país. Um país invisível ao Brasil profundo.

Chamar esse contexto de democrático é transformar a palavra em caricatura. O Brasil da superinteligência não é uma nação inteira, mas uma bolha com Wi-Fi e plano ilimitado.

A superinteligência pode até ser real. Mas será, inevitavelmente, excludente.


Nota do autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.

#maispertodaignorancia


Palavras chaves:

superinteligência, analfabetismo digital, exclusão tecnológica, Zuckerberg, democracia algorítmica, alienação digital, desigualdade informacional, acesso à internet, especialismo, fetiche técnico, barbárie do especialista, Meta, bolha digital, Brasil profundo, apartheid de dados.

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