Wi-Fi, ansiolíticos & outras rebeliões líquidas
Escrevo no lusco-fusco de um domingo, 05 h37, hora perfeita para postar selfies de brunch e exportar relatórios de exaustão. No Brasil-5G, 84 % dos domicílios já estão on-line (CETIC, 2024); ao mesmo tempo, 26,8 % dos habitantes carregam diagnóstico de ansiedade (CNN Brasil, 2023). A tela iluminou, mas o peito apertou. Entre Bauman, Ortega, Freud e Byung-Chul Han, tentarei cartografar essa geografia da aflição.
1 | Modernidade em frangalhos
Zygmunt Bauman descreveu a “modernidade líquida” como um estágio em que todas as certezas viram vapor e o sujeito oscila entre euforia e pânico (BAUMAN, 1998). No Planalto dos boletos, ela se materializa em números: Gini a 0,518 (IBGE, 2024), 7 % de desocupação formal e 38 % na informalidade (IBGE, 2025). O algoritmo promete pertencimento, mas entrega publicidade comportamental; a cada scroll, renova-se o “mal-estar da pós-modernidade”. É como se o choque entre promessa de abundância e experiência de precariedade ligasse 220 V num corpo de 127 V.
2 | A volta do “homem-massa” no feed
Antes da fibra ótica, Ortega y Gasset (2005) alertava que o “homem-massa” não quer argumentar: deseja apenas emitir opinião em bloco. Troque cafés madrilenos por grupos de WhatsApp — a lógica persiste. O sujeito mediano sente-se autorizado a clicar “encaminhar” sem examinar fontes, porque, como dizia Ortega, “o homem vulgar sabe que está no coração de uma multidão de iguais”. É o software perfeito para distribuir ansiedades: notícia falsa vira fato biográfico; ressentimento vira política pública.
3 | Do púlpito ao coach: narcóticos de bolso
Em O futuro de uma ilusão, Freud (2010a) via a religião como narcótico social — uma fantasia protetora contra a angústia civilizatória. Corte para 2025: no Brasil, 31 % dos adultos aderem a igrejas pentecostais (DATAFOLHA, 2024), enquanto o mercado de “coaching quântico” movimenta R$ 50 bi (SEBRAE, 2023). Ambos oferecem um mito customizado em 12x sem juros: solução rápida para a culpa difusa. A lógica é idêntica à dos apps de meditação que viram unicórnios: espiritualize-se em três toques, sem sair do open office.
4 | Narrativas quebradas, corpos quebrados
Byung-Chul Han (2022) fala em “crise da narração”: vivemos a fragmentação do sentido, substituindo história contínua por dados soltos. Em 2023, brasileiros passaram em média 5 h32 por dia em redes sociais (WE ARE SOCIAL, 2024). Nos consultórios, o diagnóstico acompanha: vendas de ansiolíticos cresceram 23 % entre 2020-2023 (ANVISA, 2024). A vida entra em modo stories — 24 h voláteis — e o sujeito se sente obsoleto no minuto em que posta. Sem trama, resta sintoma: TDAH coletivo, burnout estrutural.
5 | Culpa líquida & tarja preta
Em O mal-estar na civilização, Freud (2010b) explicou que o preço da cultura é a culpa interiorizada. Bauman (1998) atualizou: na era líquida, a culpa se mantém, mas as estruturas de amparo se dissolvem. O resultado, no SUS, é dramático: apenas 1,9 % do orçamento de saúde vai para saúde mental (CNS, 2023). Enquanto CAPS fecham, o mercado farmacêutico lucra; a pulsão de morte vira meta trimestral.
6 | Três gambiarras dialéticas
Lentidão subversiva.
Fazer greve de notificações por 24 h. Ortega chamaria de exercício de minoria criadora: pausar para pensar.
Coletivos de escuta. CAPS populares, rodas em praças, grupos de Telegram que não vendem e-book. Freud veria aí a “cura pela palavra” renegociando o laço social.
Tributo ao afeto. Taxar lucro de big data e financiar residência em poesia ruim nas escolas; Byung-Chul diria que só um novo logos cura a crise da narração.
Nenhuma gambiarra dará lucro, mas talvez devolva a sensação de toque à pele.
Conclusão (inacabada);
Desligo o roteador: a luz verde insiste em piscar, lembrando que o mundo não pausa. Se a civilização brasileira é download corrompido, cabe reiniciar ou seguir com falha no arquivo. Entre manhãs de ansiolítico genérico e madrugadas de Wi-Fi, talvez reste perguntar — com Bauman — se a liquidez é destino ou design. Deixo a interrogação rodando em segundo plano.
Referências:
ANVISA. Relatório de comercialização de medicamentos controlados 2020-2023.
Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2024.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BYUNG-CHUL HAN. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2022.
CETIC.br. Pesquisa TIC Domicílios 2023: principais resultados. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2024.
CNN BRASIL. “Brasil tem 26,8 % da população com transtorno de ansiedade, diz OMS”. São Paulo, 20 jun. 2023.
CNS – Conselho Nacional de Saúde. Relatório de financiamento em saúde mental no SUS. Brasília: CNS, 2023.
DATAFOLHA. Religião no Brasil: retrato 2024. São Paulo: Datafolha, 2024.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução de Paulo Cezar de Souza. 10. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2010a.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo Cezar de Souza. 10. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2010b.
IBGE. PNAD Contínua: distribuição de renda 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.
IBGE. Taxa de desocupação – abril 2025. Rio de Janeiro: IBGE, 2025.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Trad. L. Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SEBRAE. Panorama do mercado de coaching no Brasil 2023. Brasília: SEBRAE, 2023.
WE ARE SOCIAL; MELTWATER. Digital 2024 Brazil. Londres: We Are Social, 2024.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e criador do projeto “Mais perto da ignorância”, dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. #maispertodaignorancia
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