Avançar para o conteúdo principal

Trabalhar Menos Para Produzir Mais? A Arapuca da Eficiência Domesticada

Trabalhar Menos Para Produzir Mais? A Arapuca da Eficiência Domesticada



(https://revistagalileu.globo.com/saude/noticia/2025/07/quais-as-conclusoes-do-maior-estudo-sobre-a-semana-de-trabalho-com-4-dias.ghtml)


A matéria da Revista Galileu, publicada em julho de 2025, apresenta os resultados entusiasmados do maior ensaio sobre a semana de trabalho de quatro dias no Reino Unido: 92 % das empresas mantiveram o modelo após seis meses, afirmando ganhos de produtividade e de bem‑estar. Mas, sob a ótica do projeto “Mais Perto da Ignorância”, a estatística reluz como superfície polida que reflete – e esconde – a mesma engrenagem que nos exaure.


A promessa de tempo livre figura como triunfo civilizatório desde Keynes (1930), que previa uma semana de quinze horas. Contudo, o capitalismo tardio converteu o ócio em instrumento de aceleração: trabalhamos menos horas formais, mas ampliamos a disponibilidade psíquica ao trabalho, respondendo e‑mails pelo celular, cultivando competências em cursos noturnos, narrando produtividade nas redes (Han, 2015). O sujeito, outrora alienado pela fábrica, agora aliena‑se pela auto‑otimização – ele é patrão e empregado de si (Marcuse, 1964).



O experimento britânico não questiona o "para quê" do trabalho – apenas afina o "como". A felicidade relatada pelos participantes é traduzida em KPI; a saúde mental, em ativo intangível; o tempo “livre”, em janela de monetização. Como adverte Mark Fisher (2009), o realismo capitalista assimila toda contracultura e a devolve como mercadoria. A semana de quatro dias surge, então, como “marketing ESG” no qual a empresa se apresenta humanista sem abdicar da lógica do lucro.



Juliet Schor (2023) argumenta que jornadas reduzidas podem mitigar a pegada de carbono e redistribuir cuidados, mas alerta: sem alterar a estrutura do valor trabalho, corre‑se o risco de "compressão de tarefas" – fazer em trinta e dois horas o que antes se fazia em quarenta. David Graeber (2018) chamou isso de efeito de “bullshitização”: multiplicam‑se metas e relatórios para justificar o salário. Reduz‑se o tempo cronológico, mas expande‑se o tempo ansioso – o tic‑tac que coloniza o sono e a imaginação.



Marx (1867) já avaliava que a essência do capital é extrair mais‑valor pelo prolongamento – quantitativo ou qualitativo – da jornada. 

Hoje, a captura recai sobre a subjetividade: o algoritmo mede nosso engajamento mesmo quando descansamos, transformando Netflix, mindfulness e videogames em subsídios do desempenho. 

Como lembra Franco “Bifo” Berardi, a fadiga não se cura com um dia extra de folga, mas com a deserção ao imperativo de performance.


Em suma, celebrar quatro dias de trabalho como solução universal é trocar o “cansaço visível” pelo “cansaço gourmet”. O que parece avanço pode ser apenas a atualização da coleira. A pergunta permanece: "se o tempo liberado continua a serviço da produtividade, estamos realmente mais livres – ou apenas melhor configurados para produzir nosso próprio cansaço?"



Referências:


Berardi, F. (2003). A fábrica da infelicidade.


Fisher, M. (2009). Realismo Capitalista.


Graeber, D. (2018). Bullshit Jobs.


Han, Byung-Chul (2015). A Sociedade do Cansaço.


Keynes, J. M. (1930). Economic Possibilities for our Grandchildren.


Marx, K. (1867). O Capital, Livro I.


Marcuse, H. (1964). One-Dimensional Man.


Schor, J. B. et al. (2023). UK Trial Results Report – 4 Day Week Global.


Notas do Autor:


José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”, onde analisa a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Atua na clínica com foco na escuta daquilo que não aparece: a ausência, o sintoma, o tempo. Criador do blog homônimo, dedica-se a escrever contra a anestesia da positividade e a denunciar a mercantilização do sofrimento como ferramenta de controle subjetivo. Cultiva a dúvida como gesto ético. Acredita que, se o superego hoje é um botão na tela, o silêncio ainda pode ser uma forma de resistência.


📺 YouTube: https://youtube.com/@maispertodaignorancia?si=tCJOZfQITUrTlz7h


📖 Blog: https://maispertodaignorancia.blogspot.com/


📸 Instagram: https://www.instagram.com/joseantoniopsico/profilecard/?igsh=YjBseWdwZ2k3eXhr


📘 Facebook: https://www.facebook.com/groups/242155982833663/?ref=share&mibextid=NSMWBT


💼 LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/jos%C3%A9-antonio-antonio-a41b971a6?utm_source=share&utm_campaign=share_via&utm_content=profile&utm_medium=android_app

#maispertodaignorancia


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...