Scroll, logo padeço: anatomia da onipotência de bolso
Quase todo brasileiro que conheço — eu inclusive — já acorda com o polegar em posição de oração, deslizando a tela como quem busca redenção. São 3 h 42 min por dia entregues às redes, segundo o TIC Domicílios 2024 . Enquanto isso, 18,6 milhões de compatriotas carregam diagnóstico de ansiedade, liderança mundial proclamada pela OMS . Dizem que o dado é científico, mas o sintoma é caseiro: sentado no banheiro-suíte, proclamo onipresença entre azulejos frios.
Do atalho pulsional ao feed dopaminérgico
Freud avisou que o corpo adora atalhos e que o recalque exige fila. Hoje a timeline aboliu a espera, servindo dopamina em conta-gotas fluorescentes — a cada like, uma micro-dose de anestesia simbólica. Estudos com adolescentes ligam mais tempo de tela a maiores índices de estresse, ansiedade e depressão . A clínica recebe ecos: insônia, vontade vaga de deletar-se, mas nunca a causa. Falta parece gritar “plenitude” enquanto a câmera filma só a superfície polida.
Positividade tóxica e o colapso da diferença
Byung-Chul Han já decretou: excesso de positividade mata a negatividade necessária à elaboração . No feed, crítica é “hate”; silêncio é “shadow ban”. O algoritmo entrega apenas confirmação, nunca conflito. Assim, a dependência digital cumpre dupla função: anestesia a angústia de finitude e esconde o próprio curativo. Não é vício em substância — é vício em desmentir o limite.
Aceleração sem atrito, vontade sem freio
Hartmut Rosa chama isso de “aceleração social”: tudo mais rápido, nada transformado . O 5 G puxa nossa vontade — que Schopenhauer já chamava de cavalo cego — a 120 fps. O resultado é uma inveja patética de ubiquidade: ressentimento por não ocupar todas as lives e salas de áudio ao mesmo tempo. O velho limite espaço-tempo, que Darwin chamaria de biologia, torna-se ofensa pessoal.
Heróis requentados, sentido derretido
No País do Scroll Eterno, até o herói é remix dos anos 80: falha tempo para parir valores novos. Crianças e adolescentes, 92 % conectados , aprendem que salvar o mundo é desbloquear conquista na nuvem. Sofrimento vira trend, clínica vira hashtag, angústia recebe emoji solidário. A tela promete transcendência, mas devolve azulejo frio. Nenhum update instala o patch da condição humana.
Epílogo sem cura
Se você veio atrás de remédio, perdeu mais alguns segundos de rolagem. Este texto só oferece espelho rachado: likes quebram como vidro; a falta, não. Desça até os comentários, pegue o link com a autópsia completa dessa dependência — sim, o mesmo artigo da MSN que denunciou o “vício em ChatGPT” . Prometo nenhuma salvação; apenas mais uma dose de ignorância bem servida.
Referências:
CGI.BR – Comitê Gestor da Internet no Brasil. Pesquisa TIC Domicílios 2024. São Paulo: Cetic.br, 2025. Disponível em: https://cetic.br/pesquisas/tic-domicilios. Acesso em: 6 jul. 2025.
CGI.BR – Comitê Gestor da Internet no Brasil. TIC Kids Online Brasil 2024. São Paulo: Cetic.br, 2025. Disponível em: https://cetic.br/noticia/releases/tic-kids-online-investiga-pela-primeira-vez-frequencia-do-uso-de-plataformas-digitais-por-criancas-e-adolescentes/. Acesso em: 6 jul. 2025.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, B.–C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2021.
OMS – Organização Mundial da Saúde. Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Genebra: OMS, 2023. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/254610. Acesso em: 6 jul. 2025.
ROSA, H. Aceleração e alienação. São Paulo: Unesp, 2019.
ROUDINESCO, E. O eu soberano: ensaios de psicanálise. São Paulo: Zahar, 2018.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INTERNET. TIC Domicílios 2024 – Livro eletrônico. São Paulo: CGI.br, 2025.
NUNES, P. et al. “Associations of screen time with symptoms of stress, anxiety, and depression in adolescents”. Journal of Adolescent Health, 2024. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39258642/. Acesso em: 6 jul. 2025.
MICROSOFT. “Vício em ChatGPT: entenda se uso de IAs está prejudicando a criatividade”. MSN Lifestyle, 2025. Disponível em: https://www.msn.com/pt-br/estilo-de-vida/lifestylegeneral/v%C3%ADcio-em-chatgpt-entenda-se-uso-de-ias-est%C3%A1-prejudicando-a-criatividade/ar-AA1HXGXG. Acesso em: 6 jul. 2025.
Notas sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e criador do projeto “Mais perto da ignorância”, onde converte cafeína, angústia e memes em diagnósticos psicanalíticos niilistas — sem qualquer promessa de autoajuda.
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