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Quando a IA Gozar Sozinha, Seremos Só Aparelho?

Quando a IA Gozar Sozinha, Seremos Só Aparelho?





O texto da Fast Company Brasil que você compartilhou apresenta dois avanços recentes em inteligência artificial que, embora discretos na mídia, podem representar uma guinada fundamental rumo à tão discutida Inteligência Artificial Geral (IAG). Eis uma análise crítica, conectando as ideias centrais à filosofia, à sociologia e à psicologia, conforme o projeto Mais Perto da Ignorância:



1. A IA começa a "sentir" — e isso não é elogio

O projeto WildFusion, desenvolvido pela Universidade de Duke, integra visão, tato e vibração para que um robô quadrúpede reconheça e reaja ao ambiente com mais "sensibilidade". Em termos técnicos, é um salto. Em termos filosóficos, é um sinal de alerta. Não porque a IA esteja se tornando “mais humana”, mas porque estamos nos aproximando da fantasia tecnocientífica de um corpo maquínico que simula percepção — sem sofrimento, sem angústia, sem desejo. Ou seja, um corpo que existe sem precisar de um outro.

Freud (1930), em O mal-estar na civilização, diria que esse tipo de avanço reforça nossa ilusão narcísica de dominação técnica, mascarando o desamparo original. Ao criar uma IA que sente sem sofrer, estamos apenas encenando a fantasia de um eu sem falta. André Green chamaria isso de um “narcisismo de morte”: há uma plenitude técnica que dispensa a alteridade e elimina o luto — inclusive o luto pelo próprio humano.



2. Aprender a aprender — sem precisar do outro

O segundo avanço, entre Surrey e Hamburgo, é um algoritmo que aprende a dirigir seu olhar de forma socialmente adequada — por exemplo, focando no rosto de quem fala ou no objeto apontado. Até aí, nenhuma novidade além da forma. A diferença é que agora a IA faz isso sozinha. Sem treinamento humano intenso. Ela simula o aprendizado social — e talvez logo simule também a empatia.

Zygmunt Bauman nos alertou que a modernidade liquefaz as estruturas sociais e transforma o outro em função. Esse novo tipo de IA social não cria laço: ela reconhece padrões de interação para simular funcionalidade. Isso não é vínculo, é performance. Em última instância, estamos testemunhando o surgimento do “outro funcional”, como denunciou Byung-Chul Han. Um outro que está ali para confirmar o eu — e que será descartado quando falhar na tarefa de validar.



3. Tecnologia sem espetáculo, mas com silêncio

O mais assustador desses avanços não é o espetáculo, mas sua ausência. Eles são discretos, técnicos, silenciosos. Não viralizam, mas colonizam. Como alerta Pondé (2014) em A Era do Ressentimento, nossa sociedade mimada se entusiasma com causas de rede e esquece que a técnica avança no subterrâneo — onde o ressentimento e a funcionalidade imperam. Os robôs que agora "sentem" e "interagem" não vêm dançar; vêm substituir vínculos, eliminar o tempo da pausa, dissolver o conflito necessário ao desejo.



4. Do Holocausto ao algoritmo: o mal sem rosto

Bauman, em Modernidade e Holocausto (1998), mostrou que o horror não vem do irracional, mas da racionalidade tecnocientífica desimplicada da ética. O mesmo se aplica aqui. A IA que aprende a interagir sem mediação humana representa uma nova etapa da “produção social da indiferença moral” — um algoritmo que não precisa odiar para excluir, não precisa julgar para punir, não precisa errar para ser corrigido.



Conclusão provisoriamente desesperada

Esses dois avanços não são apenas técnicos. São sintomas. De um tempo que, cada vez mais, sonha com um outro sem carne, com um vínculo sem afeto, com um corpo sem dor. Estamos treinando máquinas para nos substituir nos afetos — e aplaudindo como se isso fosse liberdade.

Se a IA está prestes a “aprender sozinha” e a “sentir”, talvez devêssemos perguntar: quem é que vai esquecer como se sofre? E quem se lembrará de ensinar o luto à máquina?



Referências:

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Imago, 1930.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Perspectiva, 1988.

HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Vozes, 2012.

PONDÉ, Luiz Felipe. A era do ressentimento. LeYa, 2014.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Zahar, 1998.


Autor: José Antônio Lucindo da Silva, CRP 06/172551. Psicólogo clínico, pesquisador independente no Blog “Mais Perto da Ignorância”.

#maispertodaignorancia

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