Oversharenting: quando a infância vira clickbait e o algoritmo embala a chupeta
(BBC News, 2025 – “Parents criticised for monetising their children on social media”)
Resumo inicial – Neste artigo, percorro (em primeira pessoa, com pitadas de sarcasmo acadêmico) as vielas jurídicas, psicológicas e mercadológicas que transformam a vida doméstica em reality-show lucrativo. Costuro evidências empíricas — de base PubMed a relatórios legislativos — para mostrar como o oversharenting (a superexposição rentável da infância) compromete privacidade, saúde mental e direitos trabalhistas de quem ainda não sabe escrever “logout”.
1 | Do álbum de família ao feed patrocinado
Era uma vez o “sharenting”, união de sharing + parenting; em 2025, adicionou-se o prefixo “over-” e nasceu o oversharenting, a arte de compartilhar demais e lucrar mais ainda. Estudos com influenciadoras britânicas revelam mais de 5 000 posts infantis analisados: 86 % exibiam o rosto da criança sem consentimento formal. Pesquisa norte-americana confirma que 56 % dos pais publicam vídeos dos filhos pelo menos uma vez por semana, e 26 % monetizam essas postagens.
2 | Capital de fraldas: o mercado “kidfluencer”
O ecossistema da creator economy já vale US$ 250 bi; parte desse bolo vem de bebês fazendo unboxing de brinquedos. Nos EUA, Illinois obrigou a reservar em trust parte da receita gerada por menores de 18 anos em vlogs familiares. No Brasil, o PL 785/2025 condiciona qualquer publicidade infantil on-line à autorização judicial, enquanto decisão de 20 jul 2025 proibiu a superexposição de filhos para fins lucrativos.
Nota irônica: a velha Lei Coogan, de 1939 — criada para proteger Mickey Rooney — virou modelo copia-e-cola na era do Reels.
3 | Mentoria do algoritmo e burnout parental
Meta-análise na Journal of Pediatrics relaciona altos índices de oversharenting a maior ansiedade nos próprios pais. Já revisão da Italian Journal of Pediatrics identifica “Sharenting Syndrome”, síndrome em que a busca por validação digital eclipsa a empatia parental. Outro estudo italiano mostra que escolaridade materna baixa correlaciona-se a menor percepção de risco on-line.
4 | Privacidade pré-alfabeto e o paradoxo do consentimento
Cerca de 71 % das crianças de 12–16 anos no Reino Unido alegam que os pais não respeitam sua privacidade on-line. Relatório da Ofcom (2024) indica que 32 % dos menores já pediram para apagar fotos constrangedoras. Na prática, o consentimento vira silêncio algorítmico; juristas brasileiros defendem dano moral in re ipsa em casos de oversharenting.
5 | Vulnerabilidade à prova de print
Especialistas em segurança infantil alertam que 50 % das imagens encontradas em fóruns de abuso foram postadas primeiro por familiares. Pesquisa australiana com 12 394 pais e filhos mostra que 37 % das crianças receberam abordagens de estranhos após exposição on-line.
6 | Drama em tempo real: da birra ao bullying perpétuo
Quando pais publicam crises de birra “para ensinar resiliência”, criam arquivo perpétuo de constrangimento. Estudo norueguês descreve tensões familiares quando filhos chegam à pré-adolescência e exigem “des-postagem” de conteúdos antigos.
7 | Caso Ruby Franke: reality-show ou prova de crime?
A youtuber Ruby Franke, ícone parental, pegou até 15 anos de prisão por abuso infantil após anos monetizando “dicas de disciplina”. O tribunal considerou que a presença constante de câmeras banalizou violência cotidiana — jurisprudência sinistra sobre como audiência mascara agressão.
8 | Fronteira brasileira: entre o ECA e o feed
Juristas equiparam oversharenting a trabalho infantil não regulamentado; propõem emendas ao ECA para tipificar o “trabalho digital infantil”. Relatório da FGV recomenda algoritmos de detecção de rosto infantil para bloquear monetização sem tutela judicial.
9 | Saúde mental a longo prazo
Revisão de 2024 sobre identidade digital infantil conclui que a construção prematura do “eu on-line” dificulta autonomia emocional. Crianças cujos pais publicam detalhes de dificuldades escolares apresentam mais sintomas depressivos e autoestima reduzida.
10 | Considerações finais: curtidas que não entram no cofrinho
Confesso: já postei a foto do sobrinho lambuzado de sorvete. Mas, ao ver bebês debutando em campanhas de skincare, percebo que trocamos o álbum de família por um pay-per-view de vulnerabilidades. O oversharenting é o fast-food da memória: serve-se quente, barato e, como todo ultraprocessado, cobra a conta décadas depois, quando a criança tenta deletar rastros que nunca pediu para criar. Deslogar virou luxo; talvez a próxima trend seja ouvir o silêncio e guardar a infância onde ela sempre coube — fora do alcance do scroll infinito.
Referências:
1. AKÇAY, M. et al. Exploring the relationship between social media use, sharenting and parental well-being. Journal of Social Media Studies, 2024.
2. SILVA, L. M. Sharenting e bioética: desafios para a privacidade e segurança infantil. Revista Bioética, 2025.
3. MULTISTATE. Protecting young influencers: new laws protect content creators that are minors. 2025.
4. BUSINESS INSIDER. States crack down on mommy bloggers; creator economy hits US$ 250 bi. 2025.
5. OFCOM. Children and parents: media use and attitudes report. 2024.
Notas do Autor – Texto elaborado no âmbito do projeto “Mais Perto da Ignorância”. O sarcasmo aqui opera como bisturi: abre a ferida midiática que converte a infância em moeda de engajamento, enquanto vendemos certezas embaladas em fraldas patrocinadas.
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