O Silêncio das Redes: O Novo Recalque no Espetáculo do Desempenho
Podcast Mais Perto da Ignorância
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(https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51e5qq3yygo)
Ao que tudo indica, chegamos ao momento em que o silêncio se tornou mais eloquente do que qualquer postagem. A recente matéria da BBC Brasil intitulada “Por que tantas pessoas deixaram de fazer postagens” se propõe a analisar o fenômeno da diminuição da atividade nas redes sociais, principalmente entre os jovens. Contudo, há uma lacuna gritante em sua abordagem: a ausência de uma crítica mais profunda sobre o caráter performático e vigilante desses ambientes.
Desde o início da era da discursividade digital, ficou evidente que as redes não seriam apenas espaços de expressão pessoal, mas também arenas de exposição pública e controle social. O setor de Recursos Humanos, por exemplo, há anos utiliza esses ambientes como ferramentas de triagem comportamental. O que se posta, o que se compartilha, o que se curte – tudo isso forma o que chamamos de “currículo emocional discursivo”. E nesse cenário, o “eu soberano”, como pontua Elisabeth Roudinesco (2019), passa a ser moldado não pela interioridade, mas pela coerência externa das publicações.
A performance emocional, quando colocada em rede, deixa de ser uma elaboração genuína para se tornar uma vitrine de aceitação. Não se chora nas redes, a não ser que esse choro gere curtidas. Não se sente, a não ser que esse sentir seja validado. O sujeito, então, entra numa lógica perversa de exposição e autocensura, onde sua identidade digital é moldada por critérios de rentabilidade simbólica.
Byung-Chul Han (2015), ao refletir sobre a sociedade do cansaço, já apontava o esgotamento como produto do excesso de positividade. O “poder do pode” substitui a proibição freudiana e, com isso, desaparece a figura do recalque clássico. No entanto, o que vemos hoje não é o fim do recalque, mas sua mutação. O recalque contemporâneo se manifesta como silêncio estratégico: o sujeito não fala porque aprendeu que o dizer pode ser usado contra ele.
A matéria da BBC parece ignorar esse ponto crucial. Ao sugerir que as pessoas deixaram de postar por tédio, excesso de publicidade ou busca por autenticidade, ela esvazia a questão política e psíquica do fenômeno. A não-postagem é, hoje, uma forma de sobrevivência discursiva. É o grito abafado daquele que já entendeu que seu “eu emocional” é apenas mais um dado no grande supermercado das identidades.
A lógica da performatividade é tão intensa que até o sofrimento foi capturado pelo mercado. A “vulnerabilidade” virou branding. O “desabafo” virou engajamento. A “dor” virou produto. Freud (1930), em “O mal-estar na civilização”, já nos advertia que o processo civilizatório exige a renúncia pulsional. Mas o que ocorre quando essa renúncia é monitorada, curtida e compartilhada em tempo real? Qual o lugar do recalque quando tudo é confessável – e tudo é julgável?
Bauman (2001) define a modernidade líquida como o tempo em que nenhuma estrutura é sólida. Isso se aplica com precisão ao discurso digital: as postagens são líquidas, passageiras, descartáveis. Mas a cobrança por coerência é sólida, rígida, implacável. A contradição é clara: espera-se que o sujeito digital seja autêntico, mas dentro de um padrão estético, político e emocional aceitável.
Ao observarmos o movimento de “postagens zero”, como batizado por Kyle Chayka, é necessário ir além do diagnóstico técnico e compreender o drama psíquico dessa escolha. Não se trata apenas de mudança de hábito, mas de uma tentativa desesperada de proteger algo que ainda resta de privacidade subjetiva. Porque o “eu” digital não pertence mais ao sujeito – ele pertence ao mercado de atenção.
E quando surge a proposta de terapias mediadas por inteligência artificial, a contradição se aprofunda. Como confiar um conteúdo pulsional, inconsciente e simbólico a uma entidade que opera por dados, padrões e estatísticas? A IA pode simular escuta, mas não sustenta ausência. Pode fornecer respostas, mas não suporta silêncios. Pode acolher sintomas, mas não elabora recalques.
A essência do projeto “Mais Perto da Ignorância” está justamente em confrontar esse cenário. Não buscamos engajamento, buscamos tensão. Não queremos viralizar, queremos pensar. Nosso compromisso é com o retorno à materialidade do sentir, ao espaço não performático do sujeito que não precisa render para existir.
O silêncio nas redes não é o fim da comunicação. É o começo da resistência.
Referências:
• BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
• FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, v. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
• HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
• ROUDINESCO, Elisabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. São Paulo: Ubu, 2019.
• BBC News Brasil. Por que tantas pessoas deixaram de fazer postagens. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51e5qq3yygo. Acesso em: jul. 2025.
Notas do Autor
Texto elaborado com base nas reflexões do projeto 'Mais Perto da Ignorância', idealizado por José Antônio Lucindo da Silva, psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do blog homônimo. O projeto propõe uma crítica filosófica, psicanalítica e existencial à cultura digital contemporânea, destacando a mercantilização do sofrimento, a performatividade discursiva e a dissolução do recalque na lógica do engajamento. Com base em autores como Freud, Bauman, Byung-Chul Han e Roudinesco, o projeto busca sustentar o valor da dúvida, da pausa e da reflexão contra a tirania da positividade e do algoritmo.
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