O Instinto Materno como Construção Ideológica: Revisão Crítica e Implicações Clínicas
Resumo
Este artigo propõe uma revisão crítica do conceito de “instinto materno” a partir de uma perspectiva psicanalítica e sociológica. Argumenta-se que tal conceito é uma construção ideológica historicamente determinada, utilizada para consolidar papéis de gênero e reforçar a função materna como destino natural da mulher. Ao revisar autores como Freud, Lacan, Elisabeth Badinter e Vera Iaconelli, sustenta-se que a maternidade é uma função simbólica e desejante, e não uma imposição biológica. A análise também explora as consequências clínicas e subjetivas da imposição do ideal materno como universal e inquestionável.
Palavras-chave: instinto materno, psicanálise, função materna, ideologia, clínica contemporânea.
1. Introdução
A noção de “instinto materno” permanece fortemente enraizada no imaginário social, sendo frequentemente tratada como verdade inquestionável. No entanto, estudos contemporâneos têm demonstrado que tal conceito opera mais como uma construção ideológica do que como um dado biológico universal. Este artigo propõe-se a questionar os fundamentos dessa noção à luz da psicanálise e da crítica sociológica, considerando seus impactos subjetivos e clínicos.
2. Fundamentação teórica
2.1 Freud e a função materna
Para Freud (1914), a maternidade está relacionada ao narcisismo primário e ao investimento libidinal no objeto, mas não como algo dado biologicamente. A relação mãe-bebê implica transferência, desejo e ambivalência — e não instinto automático.
2.2 Lacan: a função e não o corpo
Lacan (1956) avança ao deslocar o materno da biologia para o simbólico. A “função materna” é atribuída àquele que introduz o sujeito no campo do desejo e da linguagem. Assim, não é necessário parir para maternar; é necessário desejar ocupar esse lugar simbólico.
2.3 Badinter e a crítica sociológica
Badinter (1985) afirma que o amor materno é uma construção social — e não um dado natural. Tal mito teria sido fortalecido em momentos históricos específicos para consolidar o papel da mulher como cuidadora e preservar a ordem patriarcal.
2.4 Iaconelli e a clínica do antimaternalismo
Iaconelli (2021) denuncia o “instinto materno” como um artefato moderno que aprisiona mulheres em uma lógica sacrificial. Ela defende que a maternidade seja possível, e não obrigatória, considerando suas contradições, limites e atravessamentos psíquicos.
3. Discussão
A naturalização da maternidade como destino compromete a escuta clínica, pois produz culpa e recalque em sujeitos que não se identificam com esse lugar ou que o habitam de forma ambivalente. Na clínica, observa-se o sofrimento psíquico de mulheres que não se reconhecem no ideal materno e que, ainda assim, são cobradas por ele. A clínica contemporânea precisa abrir espaço para o conflito e para a elaboração simbólica da maternidade como escolha e construção — e não como instinto.
4. Conclusão
Questionar o “instinto materno” é reposicionar o sujeito diante de suas escolhas e desejos. O cuidado com o outro não nasce de uma imposição biológica, mas de uma posição subjetiva que pode — ou não — ser ocupada. O desafio clínico é acolher as maternidades possíveis, os abandonos simbólicos e os lutos decorrentes da falência dos ideais, permitindo que a maternidade deixe de ser um destino disfarçado de amor para se tornar um laço ético e desejante.
Referências Bibliográficas
- Badinter, E. (1985). O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
- Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago.
- Iaconelli, V. (2021). Manifesto antimaternalista. São Paulo: Zahar.
- Lacan, J. (1956). O Seminário – Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar.
- Han, B. C. (2015). A agonia do Eros. Petrópolis: Vozes.
Comentários
Enviar um comentário