O autoritário mora ao lado: o voto é só o sintoma
Não é no palanque que nasce o autoritarismo — é no colo. A paixão pelo tirano talvez seja o eco de um afeto mal metabolizado: o líder forte preenche o buraco deixado por figuras frágeis demais para sustentar a autoridade com escuta. É disso que trata o livro “Paixão pela mentira”, do psicanalista Paulo Schiller, citado em reportagem recente do Valor Econômico. E é isso que o fascínio contemporâneo por autocratas nos esfrega na cara: o problema não é político, é íntimo.
I. O retorno do recalque como voto
Freud já nos alertava em O mal-estar na civilização (1930): o preço da vida social é o recalque. Só que aquilo que é recalcado, cedo ou tarde, retorna — travestido de “desejo de ordem”, “valores tradicionais” ou “defesa da família”. A paixão pelo autocrata é, nesse sentido, uma forma de gozo secundário: o prazer de obedecer sem ter que pensar. O desejo por líderes duros não nasce do esclarecimento, mas da saturação do discurso democrático.
II. Narcisismo de morte como pacto social
André Green (2005), em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, aponta que a entrega cega ao outro pode ser uma forma de extinção subjetiva — o sujeito escolhe não ser, para não ter que decidir. O autocrata oferece alívio: uma identidade forte, pronta, com inimigos definidos e slogans mastigáveis. Em troca, exige apenas o sacrifício do pensamento.
III. Bauman e a fragilidade emocional organizada
Zygmunt Bauman, em Amor líquido (2004), já denunciava que as relações humanas foram esvaziadas ao ponto de se tornarem descartáveis. A mesma lógica se aplica à política: escolhe-se o líder como quem escolhe um app — enquanto durar o encantamento. Mas quando o medo aperta, o autoritário se torna atraente por oferecer o que a modernidade liquefez: a ilusão de permanência.
IV. Da mesa de jantar ao voto compulsivo
Paulo Schiller acerta ao afirmar que o fascínio autocrático começa em casa. O sujeito que não pôde dizer “não” ao pai violento, que aprendeu a amar pela ameaça, encontra no discurso autoritário um velho conhecido. Há uma familiaridade doentia no “ele fala o que pensa”. O líder autoritário é, muitas vezes, a fantasia do pai que “finalmente volta” — e com ele, a promessa de silêncio, segurança e simples mandamentos.
Considerações suspensas
Não basta denunciar o fascínio pelo autoritário. É preciso entender de onde vem. E ele vem de nós — não do “outro”. Está na forma como educamos, obedecemos, silenciamos. Está na nostalgia do absoluto, no cansaço da ambivalência, na preguiça diante da dúvida.
Talvez o líder autoritário não seja um erro da democracia. Talvez seja o seu espelho.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras Completas, v. XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Salvador: EDUFBA, 2005.
SCHILLER, Paulo. Paixão pela mentira. In: RIBEIRO, Eduardo. Fascínio por líderes autocráticos começa em casa. Valor Econômico, São Paulo, 6 jul. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2025/07/06/fascinio-por-lideres-autocraticos-comeca-em-casa-diz-psicanalista.ghtml
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente, autor do projeto “Mais perto da ignorância”, dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Criador do blog e pesquisador independente no blog “Mais Perto da Ignorância”.
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