Narrativas Canceladas e o Eu Performativo: Crítica à Morte da Experiência na Era da Autoexposição
Resumo
O artigo investiga como a erosão da narração, descrita por Byung‑Chul Han, compromete tanto a construção do sujeito quanto a elaboração da experiência, gerando sintomas clínicos como ansiedade digital, nomofobia e depressividade. Dialogando com Walter Benjamin, Sigmund Freud, Zygmunt Bauman, Jean Baudrillard, Fédida e Emil Cioran, argumenta‑se que a narrativa é condição de saúde psíquica e de comunidade simbólica. Sem ela, o “eu” torna‑se performativo, exposto e esvaziado.
1 Introdução
A premiação de Byung‑Chul Han com o Prêmio Princesa de Astúrias (2025) sinaliza o alcance popular de uma filosofia que denuncia o esgotamento narrativo na cultura digital.(cadenaser.com) No ensaio A Crise da Narração, Han afirma que a informação instantânea substituiu a partilha de sentido que caracterizava o contador de histórias.(almedina.ams3.cdn.digitaloceanspaces.com) A presente reflexão, integrada ao projeto Mais Perto da Ignorância, busca atualizar tal diagnóstico em diálogo com a clínica psicológica.
2 A Crise da Narração e do Sujeito
Walter Benjamin já alertava, em O Narrador, para o empobrecimento da experiência quando a história perde densidade temporal.(usp.br) Han radicaliza essa análise ao associar a crise da narrativa à destruição do senso de comunidade.(revistas.usp.br) Nesse cenário, o sujeito desliza de autor da própria trama para produto algorítmico, trocando desejo por demanda.
3 Empobrecimento da Experiência e Modernidade Líquida
Bauman define a modernidade líquida como um tempo de relações descartáveis e identidades voláteis.(mundoeducacao.uol.com.br) Baudrillard complementa: na hipermodernidade, os simulacros substituem o real, instaurando uma implosão da narrativa.(media-studies.com) A experiência, privada de duração, converte‑se em input estatístico.
4 Sintomas Clínicos na Era Digital
Freud já descrevera o desconforto civilizatório quando o sujeito renuncia ao desejo em favor do controle social.(cei1011.files.wordpress.com) Hoje, a renúncia se dá pela hiperexposição: quem não se publica, desaparece. Os efeitos psíquicos incluem nomofobia e ansiedade associadas ao uso intensivo de redes sociais.(researchgate.net, cnnbrasil.com.br) Além disso, observa‑se uma depressividade marcada pela impossibilidade de elaborar luto num fluxo sem pausas.(scielo.br) Quando a experiência vira ruído, a dor perde metáfora e retorna como sintoma.
5 Perspectivas Críticas e Possibilidades de Resistência
Han, em Psicopolítica, mostra que o neoliberalismo captura até a psique como força produtiva.(faculdadejesuita.edu.br) Em No Enxame, ele sugere que a multiplicidade digital opera sem coesão narrativa, gerando um swarm de sensibilidades isoladas.(skoob.com.br) Cioran, por sua vez, ironiza a busca de sentido num mundo saturado de discursos.(pensador.com) Diante disso, recuperar espaços de silêncio e escuta — como defende Benjamin em “Experiência e pobreza” — torna‑se ato clínico e político.(bibliotecasocialvirtual.files.wordpress.com)
6 Considerações Finais
Sem narrativas, o “eu” transforma‑se em índice de engajamento; sem experiência, a comunidade converte‑se em plateia. É urgente resgatar a narração como prática de resistência e cuidado de si. O projeto Mais Perto da Ignorância propõe, portanto, reinstalar a dúvida fértil e o tempo da história no centro da clínica e da crítica cultural.
7 Expulsão do Outro e o Terror do Igual
A publicação de A expulsão do outro (HAN, 2022) radicaliza o diagnóstico da crise narrativa ao afirmar que a sociedade hiperconectada não reprime mais — ela alisa. Em vez de proibir, super‑comunica. O resultado é o “terror do igual”: qualquer alteridade que convocaria elaboração dialética é absorvida como diversidade mercadológica. O Outro deixa de ser desafio transformador e passa a ser item curável por like‑terapia.
Han descreve essa patologia como um processo adiposo: cresce sem forma, não encontra anticorpos e sufoca o sujeito pelo mesmo. A depressão deixa de ser falta de estímulo e se torna excesso de positividade. Nessa lógica, a clínica já não trata traumas singulares, mas obesidades discursivas — infartos de sentido provocados pelo Komaglotzen da timeline.
7.1 Nomofobia e a ilusão do ilimitado
A nomofobia, estudada por King et al. (2014), ecoa o terror do igual: há pânico diante da perda de conexão porque a identidade foi terceirizada à rede. Sem smartphone, o eu cai no abismo da própria interioridade, espaço hoje descuidado.
7.2 A hospitalidade negada
Para Han, a única resposta ética ao terror do igual seria reabilitar a hospitalidade kantiana — acolher o Outro não como conteúdo, mas como ruptura. No âmbito clínico, isso implica devolver ao setting a alteridade do silêncio, sustentar pausas que a cultura da aceleração censura.
8 Hospitalidade como Estética da Resistência
Se o algoritmo maximiza previsibilidade, hospitalidade reinstaura incerteza fecunda. Práticas narrativas — contos, casos clínicos, poesia — surgem como micro‑abrigos onde o estranho pode residir sem virar story patrocinado. A escrita reflexiva, marca do nosso projeto, opera como ensaio de hospitalidade simbólica.
Inspirados em Celan e Benjamin, propomos oficinas de “escuta do estranho” que trabalhem com cortes de fluxo (fasting digital, leitura lenta) para reeducar a percepção. A clínica online, por sua vez, pode adotar protocolos de latência deliberada — pequenos silêncios de 5 s antes de responder — para drenar o automatismo react.
9 Conclusão Expandida
Do mal‑estar freudiano ao terror do igual haniano, a história é a mesma: sem tensão, não há sujeito; sem sujeito, não há narrativa. O excesso de positividade gorduroso exige uma dietética simbólica: menos feed, mais fome de sentido; menos selfie, mais alteridade.
Portanto, sofisticar o discurso não é ornamentar retoricamente o vazio — é re‑espessar o tempo, reinjetar fricção e convidar o Outro a romper a bolha da autofagia digital. O projeto Mais Perto da Ignorância reafirma‑se, assim, como laboratório de hospitalidade discursiva: um lugar onde o eu deixa de vender‑se para, quem sabe, voltar a contar‑se.
Referências:
BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985. BENJAMIN, Walter.
Experiência e pobreza. 1933. Disponível em: https://bibliotecasocialvirtual.files.wordpress.com/2010/06/walter-benjamin-experiencia-e-pobreza.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025. BAUDRILLARD, Jean.
Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CIORAN, Emil. Silogismos da amargura.
Rio de Janeiro: Rocco, 2011. FÉDIDA, Pierre. A clínica da depressão: questões atuais.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 9, n. 3, 2006.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 1930. Disponível em: https://cei1011.files.wordpress.com/2010/04/freud_o_mal_estar_na_civilizacao.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.
HAN, Byung‑Chul. A crise da narração. Coimbra: Almedina, 2022.
HAN, Byung‑Chul. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Petrópolis: Vozes, 2022.
HAN, Byung‑Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
HAN, Byung‑Chul. No enxame – Perspectivas do digital.
Petrópolis: Vozes, 2017. INSTITUTO CACTUS; ATLASINTEL. Panorama da Saúde Mental no Brasil. 2023. KING, A.; NARDI, A.; CARDOSO, A.
Nomofobia: impactos psíquicos do uso abusivo das tecnologias digitais. Journal of Psychiatry, v. 25, n. 2, 2014. CELAN, Paul. Barreira linguística. In: Obras completas.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000. EHRENBERG, Alain.
La fatigue d’être soi: dépression et société. Paris: Odile Jacob, 1998. BUDE, Heinz.
Gesellschaft der Angst. Hamburgo: Hamburger Edition, 2014.
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