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Na palma da mão: o superego algoritmizado e o colapso do íntimo

Na palma da mão: o superego algoritmizado e o colapso do íntimo

Resumo

Este artigo investiga a mutação do superego freudiano frente à lógica da hipervisibilidade mediática contemporânea. 
A partir da clínica psicológica e do pensamento de autores como Freud, Byung-Chul Han e Zygmunt Bauman, propõe-se que o superego — outrora instância simbólica internalizada — hoje opera como uma exigência de performance visível, alimentada por redes sociais e métricas algorítmicas. 

Examina-se como esse deslocamento produz sintomas inéditos, dificulta a escuta subjetiva e desafia a ética clínica. 
Conclui-se que a clínica, mais do que nunca, precisa sustentar o espaço da elaboração como resistência à dissolução do sujeito.


Abstract

This article investigates the mutation of the Freudian superego in light of the logic of contemporary mediatic hypervisibility. Drawing from clinical psychology and authors such as Freud, Byung-Chul Han, and Zygmunt Bauman, it is proposed that the superego — once a symbolic internalized instance — now operates as a demand for visible performance, driven by social networks and algorithmic metrics. The paper examines how this displacement produces new symptoms, impairs subjective listening, and challenges clinical ethics. It concludes that clinical practice must, more than ever, sustain a space for elaboration as resistance to the dissolution of the subject.


Introdução

A função do superego, tal como formulada por Freud em O mal-estar na civilização (1930), estava profundamente enraizada na necessidade de repressão pulsional como fundamento da convivência social. Ao internalizar a figura do pai — seja este representado pelo interdito, pela cultura ou mesmo por Deus — o sujeito era atravessado por uma instância que operava desde o inconsciente, exigindo renúncia, culpa e ideal. 
No entanto, o que se observa na contemporaneidade é uma mutação radical desse aparelho psíquico: o superego deixou de ser apenas uma instância interiorizada para assumir um papel externo, visível, performativo — e, paradoxalmente, tátil.


O Superego como Interface

Hoje, o superego cabe na palma da mão. Através de telas, plataformas e métricas de engajamento, o sujeito passa a ser vigiado, julgado e moldado não apenas pelo olhar do Outro simbólico, mas por um sistema de reconhecimento algorítmico que transcende a convivência material. 
Trata-se de uma mutação ética e psicológica na qual a repressão não mais ocorre via interdito, mas via cancelamento, não mais por proibição, mas por excesso. 
A figura do Deus castrador, antes inalcançável, foi substituída pela lógica do 'todos me veem, mesmo que eu esteja só' — instaurando uma sensação constante de exposição que produz sintomas, mesmo quando nenhuma ação concreta tenha sido tomada contra o sujeito.


Funcionalidade e sintoma

A experiência clínica revela uma inversão notável na função do Outro. Se para Freud o Outro representava o campo de tensão necessário à constituição do desejo — aquilo que introduz a falta e, por conseguinte, a possibilidade de subjetivação — hoje, esse Outro se apresenta como funcionalidade performática. 

O sujeito se ajusta àquilo que o Outro espera dele em termos de engajamento. 
O desejo foi substituído por demanda, e a alteridade transformada em interface. Essa nova configuração gera sintomas: 
ansiedade diante da ausência de feedback, depressividade por não reconhecimento e um esvaziamento da escuta interior.


A escuta clínica como resistência

No espaço clínico, escutar o que falta tornou-se mais importante do que responder ao que aparece. Muitos pacientes se apresentam com discursos afetivamente carregados, mas que não possuem ancoragem material. 
Falam de si como terceiros, construindo um falso 'selfie discursivo'. A função clínica, então, é sustentar o silêncio para que o sujeito possa ouvir-se e, quem sabe, estranhar-se. O terapeuta não está ali para reforçar a performance do eu, mas para questioná-la. O tempo clínico, hoje, é um dos poucos espaços em que a velocidade pode ser contida e a escuta, efetivamente instaurada.


Conclusão

A fragmentação do eu contemporâneo é efeito direto de um mundo estruturado por conexões efêmeras e materialidades esvaziadas. 
Bauman descreveu a modernidade líquida como aquela em que os vínculos se desfazem antes de se estabelecerem. 
As redes sociais funcionam como vitrines de um eu fragmentado, alimentado por um superego algorítmico. 
O espaço clínico torna-se, então, uma trincheira da escuta. Sustentar o tempo da fala e a elaboração do sofrimento sem apressar o sujeito é talvez o gesto ético mais radical de nossa época. 
A clínica é, assim, o avesso da rede — não um lugar para mostrar-se, mas para se suportar.


Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, v. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Nota sobre o autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”, onde analisa a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Atua na clínica com foco na escuta daquilo que não aparece: a ausência, o sintoma, o tempo. Criador do blog homônimo, dedica-se a escrever contra a anestesia da positividade e a denunciar a mercantilização do sofrimento como ferramenta de controle subjetivo. Cultiva a dúvida como gesto ético. Acredita que, se o superego hoje é um botão na tela, o silêncio ainda pode ser uma forma de resistência.
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