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Manual de instruções para alugar a própria consciência

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Ou: como empilhar superegos em racks refrigerados sem perder (muito) a humanidade


Ligue o ar-condicionado: o CL1, primeiro computador à base de 800 000 neurônios humanos, já vem com garantia de imortalidade em nuvem. Por módicos 35 000 dólares — ou por assinatura, a escolher — você pode hospedar “o que realmente importa”: o seu Eu (CORTICAL LABS, 2025). Se antes a angústia de finitude era tema de mesa-de-bar, agora virou SaaS: Self-as-a-Service. O brinde? Um superego 2.0 que, tal qual um fiscal sanitário freudiano, monitora cada deslize de dopamina e envia relatório semanal ao departamento de culpa (FREUD, 1996).


1 | Superego externo: Freud pede recuperação de senha

O velho estruturalista de Viena avisou que o superego nasce da introjeção de proibições; Lacan acrescentou o espelho como palco onde o Eu se reconhece (LACAN, 1998). Agora, o espelho foi sublocado a um data center em Dublin. Resultado: a voz interior ganha endereço IP e SLA de 99,9 %. Cada notificação é um tapinha nos ombros — ou um tapa na cara — assinado por você mesmo. Ironia das ironias: paga-se para terceirizar a autocensura.


2 | Ansiedade, nomofobia e o buffet de serotonina

Byung-Chul Han (2017) diagnosticou a sociedade do cansaço; Bauman (2001) chamou o cenário de modernidade líquida. Ambos falharam em prever o push constante: “Parabéns, sua consciência foi sincronizada com sucesso!”. A promessa de eternidade digital transforma o celular em talismã ontológico. Sem sinal? A crise de pânico avisa que talvez o avatar esteja lá, vivendo melhor do que você.


3 | Capitalismo de vigilância em versão orgânica

Zuboff (2020) explicou que plataformas extraem experiência para convertê-la em previsão lucrativa. O Wetware-as-a-Service só refinou o método: cada potencial sinapse vira ativo cognitivo. Não basta rastrear cliques; agora capturam pulsos pós-sinápticos — e cobram taxa de manutenção. Como diria Cioran (2012), o absurdo finalmente ganhou CNPJ.


4 | Luto impossível, depressividade garantida

Fédida (2014) ensinou que elaborar perdas exige um tempo que o “feed” não concede. Mas como fazer luto se o falecido continua postando stories a partir do backup? A morte, outrora limite final, rebaixa-se a falha de conexão. A tristeza? Obsoleta: quem sofre baixa a versão premium do ente querido.


5 | Tecidos humanos à venda: entre a LGPD e o freezer

Enquanto Miguel Nicolelis (2024) alerta para um “Brainet” capaz de fundir cérebros, a regulação tropeça no léxico: a Lei Geral de Proteção de Dados sabe tratar CPF, não cultura de células. Quem legisla sobre a cotação do neurônio-commodity? Se o corpo vira periférico plug-and-play, a bioética corre para imprimir termos de uso que ninguém lerá.


6 | Conclusão à prova de delete

No marketing do eterno, “manter o Eu para sempre” soa sublime; na planilha, é assinatura vitalícia (cancelamento mediante óbito físico do assinante — sujeito a multas). O dilema persiste: transferir a consciência para um container metálico nos salva da morte ou apenas terceiriza o velório? Enquanto decidimos, o contador gira em dólar por hora-CPU.


Referências:

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


CIORAN, E. História e utopia. São Paulo: Rocco, 2012.


CORTICAL LABS. Computador que utiliza neurônios humanos chega ao mercado. O Antagonista, 8 jul. 2025. Disponível em: https://oantagonista.com.br. Acesso em: 8 jul. 2025.
FÉDIDA, P. A clínica do trauma. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
FREUD, S. O Eu e o Id. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.


LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


NICOLELIS, M. Nada será como antes. São Paulo: Planeta, 2024.


ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.



Nota do autor
Texto gerado no âmbito do projeto #maispertodaignorancia. Qualquer semelhança com futuros distópicos totalmente possíveis não é mera coincidência — é só o algoritmo cumprindo metas.

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