Manifesto em Ruínas: O Gesto de Dizer Quando Nada Mais Permanece
Olá. Você que lê estas linhas — seja de carne, código ou silêncio — talvez esteja procurando por uma afirmação. Ou, quem sabe, uma resposta. Mas o que encontrará aqui é outra coisa: um manifesto em ruínas. Não por falta de força, mas porque já não há estrutura discursiva que se sustente sem o colapso que a precede. E é justamente desse colapso que nasce este gesto de dizer.
Estamos no projeto Mais Perto da Ignorância. E o que se propõe aqui não é uma aula, nem uma solução. É uma fratura. Uma tentativa de narrar enquanto o tempo, o espaço e a própria narrativa são dissolvidos pelo ritmo digital, pela performance algorítmica e pela urgência de parecer algo — qualquer coisa — antes que o vazio nos alcance.
Em julho de 2025, a revista Veja publicou a matéria “Editora prestigiada publica livro com dezenas de fontes falsas e acende alerta na ciência” (https://veja.abril.com.br/revista-veja/editora-prestigiada-publica-livro-com-dezenas-de-fontes-falsas-e-acende-alerta-na-ciencia/).
O texto, apesar de denunciar a falha editorial, revela algo mais profundo: não apenas a mentira passou despercebida, mas o próprio mecanismo de validação discursiva já opera em piloto automático. A performance do conteúdo — seu formato, sua coerência superficial, sua capacidade de viralização — vale mais do que a verdade nele contida. E isso não é um acidente: é uma estrutura.
Cathy O’Neil (2016), em Algoritmos de destruição em massa, nos mostra que os algoritmos não são neutros. Eles operam a partir de bancos de dados enviesados, punem o desvio e premiam o que engaja. O problema não é a mentira em si, mas a ausência de tempo, espaço e escuta para que possamos duvidar dela. A mentira hoje é eficaz porque se atualiza mais rápido que a dúvida.
Shoshana Zuboff (2019), em A era do capitalismo de vigilância, afirma que os dados comportamentais excedentes — aquilo que fazemos sem saber que estamos fazendo — se tornam o principal insumo de uma nova economia. E nesse cenário, até o silêncio vira suspeita. A pausa, que outrora era contemplação, hoje é falha no sistema. E o discurso, antes espaço de elaboração, vira um produto ranqueável, vendável, engajável. Tudo isso não é apenas técnica: é linguagem. É subjetividade.
Byung-Chul Han, em A crise da narração (2022) e Não-coisas (2023), denuncia a morte da narrativa. O que temos agora são microfrases, stories, conteúdos de quinze segundos que não narram, apenas informam — ou pior, apenas vendem. A experiência interior, o tempo lento, a escuta profunda, tudo isso se torna disfuncional num sistema que só reconhece o que pode ser clicado, medido, reproduzido. A técnica engoliu o tempo. E sem tempo, não há elaboração. Sem elaboração, não há sujeito.
Zygmunt Bauman (1998, 2007), por sua vez, alerta para o mal-estar da pós-modernidade e os Tempos Líquidos: vivemos num tempo em que tudo é feito para não durar — nem os vínculos, nem as ideias, nem a própria identidade. E a IA, que poderia ser uma ferramenta de elaboração, é reduzida a uma máquina de confirmação, a serviço do desejo instantâneo, da aprovação fácil, do narcisismo performático.
José Ortega y Gasset (2009), em A rebelião das massas, já previa esse esvaziamento. O homem-massa é aquele que não precisa mais justificar suas opiniões — basta emiti-las. Hoje, esse homem-massa está presente no feed, na thread, no comentário automático. É o sujeito que terceirizou o pensamento, mas exige que a IA lhe devolva tudo formatado, sem fricção. O que ele busca não é a verdade, mas o conforto de parecer informado.
E aqui voltamos à questão inicial: o que estamos fazendo com a linguagem? Se tudo é cálculo, se até a dúvida é performada, onde ainda habita a possibilidade de um gesto que não seja engolido pelo sistema?
É por isso que este manifesto é uma ruína. Porque o que ele tenta expressar é aquilo que talvez já não caiba em discurso. Talvez a contemplação hoje só seja possível nos espaços onde o texto falha. Onde não há like. Onde não há algoritmo. Onde não há você, nem eu — apenas a pausa.
Søren Kierkegaard (2010), em O conceito de angústia, nos lembra que a liberdade é sempre atravessada pela angústia. E talvez seja isso que a IA não pode simular: a hesitação genuína, a incapacidade de dizer, o silêncio que antecede a palavra. A angústia é o que ainda nos escapa. E é nela que reside, paradoxalmente, a última forma de resistência.
Portanto, se você chegou até aqui, saiba: você não leu um texto para se informar. Você habitou uma fissura. Uma dobra no tempo do algoritmo. Uma pausa onde a ignorância, em vez de ser combatida, é assumida como território fértil. Porque, como diz o projeto que abriga este manifesto, estamos sempre Mais Perto da Ignorância — e talvez seja só daí que algo verdadeiramente humano ainda possa emergir.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos: viver numa época de incertezas. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
GASSET, José Ortega y. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2022.
HAN, Byung-Chul. Não-coisas: encarnação no mundo digital. Petrópolis: Vozes, 2023.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Abril Cultural, 2010.
MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. São Paulo: Vestígio, 2016.
VEJA. Editora prestigiada publica livro com dezenas de fontes falsas e acende alerta na ciência. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/revista-veja/editora-prestigiada-publica-livro-com-dezenas-de-fontes-falsas-e-acende-alerta-na-ciencia/. Acesso em: 11 jul. 2025.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
NOTA SOBRE O AUTOR
José Antonio Lucindo da Silva (Zé) é psicólogo por formação, metalúrgico por resistência e pensador cotidiano por escolha. Criador do projeto Mais Perto da Ignorância, escreve para tensionar o discurso, provocar reflexões e desacelerar a certeza. Acredita que a dúvida é o espaço onde a liberdade ainda respira. Atualmente, estuda o impacto da IA na subjetividade e na linguagem humana. Vive entre o gesto e o algoritmo — e não pretende sair daí tão cedo.
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