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Entre Superegos e Algoritmos: Freud Não Te Seguiria de Volta

Entre Superegos e Algoritmos: Freud Não Te Seguiria de Volta




É curioso, para não dizer desesperador, que tenhamos conseguido converter a “Psicologia das Massas” de Freud em manual de boas práticas para linchamento digital. A matéria da Aventuras na História (2023) tenta nos vender uma reconciliação improvável: o cancelamento como fenômeno que Freud “explicaria” com entusiasmo, como se o velho doutor estivesse a favor do tribunal da hashtag. 





Permita-me, com ironia devidamente fundamentada, discordar.
A primeira confusão já começa no entendimento de massa. Para Freud (1921/2011), a massa não é só um ajuntamento de corpos, mas uma dissolução do Eu. O indivíduo, ao se fundir com o grupo, suspende sua autonomia crítica e se submete a uma identificação com o ideal.
 
No cancelamento digital, no entanto, não há ideal coletivo — apenas a projeção de ressentimentos individuais em figurações de moral. Cancelar não é aderir a um projeto comum, mas gozar com a desgraça alheia. A massa digital é uma massa de egos narcísicos colapsando entre si.

André Green (2005), em “A Loucura Privada”, nos ajuda a perceber esse colapso: o sujeito contemporâneo, em sua forma mais precária, não consegue simbolizar a perda, e por isso ataca. O cancelamento, nesse contexto, não é um ato ético, mas defensivo. Uma defesa narcisista diante do outro que ameaça a frágil consistência do eu.
 
O outro que pensa diferente precisa ser eliminado, não argumentado.
E é aqui que entra Byung-Chul Han (2021), com sua análise sobre o imperativo da funcionalidade em “Não-Coisas”. 
O cancelamento funciona como um dispositivo técnico, não simbólico. Ele não visa o sentido, mas a eliminação. O discurso se torna operação. A moral, um código de eficiência. O outro não é interlocutor — é bug no sistema.

Essa lógica de cancelamento, ao contrário do que insinua a matéria, não se alinha à análise freudiana da massa. Freud descreve o sofrimento psíquico a partir da tensão entre desejo, culpa e repressão.
 
Já o ambiente digital suprime a repressão e expõe tudo em tempo real, substituindo o recalque pelo compartilhamento. Não há sintoma, só reação.

No fim das contas, o uso contemporâneo da psicologia das massas para justificar práticas de aniquilação simbólica é mais um sintoma do que uma solução. 
Estamos menos organizados em torno de ideais coletivos do que atomizados em busca de validação. Cada clique é uma afirmação desesperada de que ainda existimos — mesmo que seja como parte do pelotão de fuzilamento simbólico.

E enquanto Freud tentava entender o que a massa recalca, hoje tentamos entender o que a massa retuíta.


Referências:

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 2011.

GREEN, A. A loucura privada. Salvador: UFBA, 2005.

HAN, B.-C. Não-coisas: Encantamento do mundo pela informação. Petrópolis: Vozes, 2021.

AVENTURAS NA HISTÓRIA. Freud explica: Massas e o cancelamento digital. 2023. Disponível em: https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/freud-explica-massas-e-o-cancelamento-digital.phtml. Acesso em: 31 jul. 2025.


Palavras-chave:
cancelamento digital, Freud, psicologia das massas, André Green, narcisismo negativo, simbolização, destruição psíquica, superego digital, Byung-Chul Han, funcionalidade, não-coisas, subjetividade líquida, gozo, moral performativa, ambiente discursivo, algoritmos, espetáculo punitivo, repressão, linchamento simbólico, cultura digital.


Nota sobre o autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.

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