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Entre o déficit e o espelho

Entre o déficit e o espelho

Narcisismo de morte, populismo fiscal e meu impasse psicossocial diante da economia brasileira


Eu começo lembrando o número que não sai da minha cabeça: setenta e sete por cento de PIB. Esse é o tamanho da dívida bruta brasileira, segundo o último relatório oficial¹. Repito mentalmente, quase como um mantra amargo, porque ele resume nosso paradoxo nacional: aprendi, como qualquer estudante de finanças públicas, que um Estado endividado deveria conter renúncias fiscais e apertar despesa. No entanto, caminho pelas manchetes e vejo governos sucessivos — de tons ideológicos diversos — abrirem mão de mais de um trilhão de reais em isenções nos últimos doze anos².

 

Não é simples contradição técnica; trato como sintoma psíquico. Sinto que, em nosso debate cotidiano, quanto mais buraco, melhor a foto. Quanto maior o “rombo recorde”, mais likes rendem os discursos redentores que pipocam nas redes. Quando leio André Green³ explicando o narcisismo de morte, encontro um espelho coletivo: aquela libido que, em vez de buscar um objeto, dobra-se sobre o próprio sujeito até devorá-lo. Transfiro a figura da clínica para a comunidade política: o Brasil — ou melhor, a narrativa que o Brasil faz de si — goza na autossabotagem. Cada subsídio irresponsável, cada renúncia, cada teto furado serve de prova de que não prestávamos mesmo; reforça a velha cena do “vira-lata” rodrigueano⁴, agora turbinada pela retórica de timeline.

 

Releio Bauman⁵ e me deparo com outra chave: modernidade líquida. Tudo flui, nada dura, especialmente a confiança. Na liquidez brasileira, a insegurança fiscal vende. Vende porque promete dois presentes simultâneos: a sensação de ganho imediato (“meu diesel ficou mais barato”) e a epopeia apocalíptica (“o país está quebrado, só eu salvo”). Essas duas emoções geram cliques, votos, salvam carreiras parlamentares — mas custam estradas, creches, redes de esgoto que não viram foto.

 

Vejo os números frios da Receita Federal: só entre 2019 e 2023, R$ 426 bilhões em desonerações⁶. Penso na lógica de populismo fiscal descrita por economistas como Alesina e Tabellini⁷: benefícios concentrados no presente contra custos difusos no futuro. Reconheço o ciclo: governo concede, imprensa noticia alívio, mercado estranha, rating cai, e eu, contribuinte, pago um juro mais alto na virada do ano. Estaria tudo bem se fosse exceção; virou método.

 

Há mais. Quando a crise estoura, não falta quem convoque a catarse nacional: “temos de cortar tudo”, gritam uns; “temos de gastar muito mais”, berram outros. Nessa arena polarizada, o ajuste ortodoxo e o expansionismo sem lastro performam como super-heróis rivais. Discuto com amigos e percebo que poucos tocam na parte indigesta: a máquina real de gasto inflexível, as distorções de renúncia casuística, a federação que distribui ônus e bônus de forma perversa. Explicar isso dá trabalho, não rende meme. Mais fácil oferecer a poção mágica em 280 caracteres.

 

Enquanto isso, caminho por bairros onde 46 % das casas ainda não têm coleta de esgoto formal⁸. Passo em frente a escolas com tetos de Eternit dos anos 1970. Lembro que o Ipea calculou: se investíssemos razoáveis 0,6 % do PIB ao ano em saneamento básico por uma década, reduziríamos em 18 % as internações por doenças diarreicas. Contudo, esse tipo de investimento some quando estouro do déficit obriga o governo a cortar o capex para segurar o primário. No teatro, encenamos a luta ideológica; na rua, a lógica de morte silenciosa opera.

 

Penso então no narcisismo de morte ganhando feição prática: o Estado-sujeito fala em bem-estar universal enquanto produz ruas esburacadas, filas no SUS, insegurança alimentar para 33 milhões de pessoas. Cada fracasso confirma o roteiro: “não adianta tentar, o Brasil não dá certo”. Eu me pergunto: que ganhos inconscientes tiramos dessa dor? Talvez, ao nos atribuir uma identidade de fracasso, livram-se elites e cidadãos da responsabilidade de um trabalho de longo prazo, paciente, chato. Melhor o frisson da crise perpétua.

 

Sou levado à mídia. Não à mídia como demônio abstrato, mas ao ecossistema em que colunistas, repórteres e influencers pescam atenção em mares turbulentos. Aqui vale a lição de Bauman⁹: insegurança vira mercadoria. Um déficit recorde gera alertas vermelhos, que por sua vez atraem cliques, que por sua vez geram receita publicitária. No próximo ciclo, deputados propõem o pacote “Brasil Urgente” — renúncia, subsídio — e o rombo cresce de novo; o mancheteiro celebra. Roda viva perfeita.

 

E a mim, o que resta? Tento romper a fascinação do espelho. Sigo cinco pistas:

 

1.      Traduzir orçamento em histórias concretas. Não digo “R$ 20 bilhões em renúncias”, mas “oitocentas mil crianças sem vaga em creche”.


2.      Regras fiscais anticíclicas claras, vigiadas por conselhos independentes, para reduzir espaço de manobra eleitoral.


3.      Letramento midiático: ensinar jovens a farejar alarmismo e distinguir análise de performance teatral.


4.      Pactos federativos sérios: estados e municípios precisam dividir tanto recompensa quanto sacrifício.


5.      Cultura de integridade digital: cada centavo público rastreável, em tempo real, no celular de qualquer cidadão.

Se tudo isso soa tecnocrático, lembro-me de Green: enfrentar o narcisismo de morte é deslocar a energia libidinal autodestrutiva para um investimento erótico no mundo. O amor-ao-bem-comum exige intencionalidade, não acontece por gravidade. O presente texto é meu pequeno ato dessa intenção: negar-me ao gozo de repetir “o Brasil não tem jeito”, multiplicando em vez disso possibilidades de cuidado com esse corpo coletivo do qual dependo.

 

Não sei se basta. Sei que, cada vez que uma renúncia fiscal regressiva aparece em forma de “pacote do bem”, recordo Baudelaire: “o pior que pode acontecer a um falido é ser admirado pela habilidade com que esconde a própria falência”. Conto até três, respiro e me esforço para, na próxima roda de conversa, substituir indignação estéril por argumentos concretos. Talvez assim aconteça a mutação que faltava: trocar o espelho pela janela. Eu, pelo menos, sigo tentando.


Referências:

 

Alesina, Alberto; Tabellini, Guido. Bureaucrats or Politicians?. Cambridge: Harvard University Press, 2008.

 

Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

 

Bauman, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

 

Banco Central do Brasil. Relatório de Estabilidade Fiscal, 1.º semestre de 2025. Brasília, 2025.

 

Green, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

 

Ipea. Infraestrutura social no Brasil: diagnóstico e perspectivas. Brasília, 2024.

 

Nelson Rodrigues. A cabra vadia – novas confissões. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.

 

PNAD Contínua. Microdados Trimestre Móvel fev-abr 2025. IBGE, 2025.

 

Receita Federal do Brasil. Relatório de Gastos Tributários 2024. Brasília, 2024.

 

 

 

Nota sobre o autor

 

Assino como pesquisador independente e editor do projeto “mais perto da ignorância”, voltado a examinar cultura digital, política e subjetividade sob lentes psicanalíticas e existencialistas.


#maispertodaignorancia 

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