Entre o Déficit e o Espelho: narcisismo de morte, populismo fiscal e o impasse psicossocial da economia brasileira
Entre o Déficit e o Espelho: narcisismo de morte, populismo fiscal e o impasse psicossocial da economia brasileira
Resumo
Nas últimas décadas, o Estado brasileiro convive com déficits orçamentários crônicos e uma dívida pública em trajetória ascendente. Paradoxalmente, governos de matizes distintos mantêm – ou ampliam – renúncias fiscais, subsídios regressivos e pacotes de benefícios de curto prazo que agravam a fragilidade estrutural. Este ensaio interpreta esse aparente “apetite pelo fracasso” à luz do conceito de narcisismo de morte (Green), articulado a categorias de Bauman (modernidade líquida) e à economia política do populismo fiscal. Argumenta-se que tal lógica autodestrutiva opera como resposta psíquica coletiva à tensão entre desigualdade persistente e promessa democrática de bem-estar; ao espetacularizar a crise, produz-se capital simbólico e eleitoral, ainda que à custa da solvência do futuro.
1. Introdução
Desde 2014, o setor público consolidado do Brasil fecha as contas no vermelho; a dívida bruta atingiu 77 % do PIB em 2024 (Banco Central, 2025), mesmo após um ciclo de commodity boom, reformas previdenciárias parciais e teto de gastos. De fora, a pergunta parece simples: por que insistir em políticas que dilatam o rombo? De dentro, porém, observa-se que “quanto pior, melhor” gera dividendos eleitorais, midiáticos e afetivos. Para explicar o paradoxo, recorremos à noção psicanalítica de narcisismo de morte – energia libidinal que, não encontrando objeto externo, volta-se contra o próprio sujeito (Green, 1988). Transferido do indivíduo para a comunidade política, o conceito revela como o corpo nacional sabota seus próprios projetos de soberania econômica.
2. Narcisismo de morte: da clínica ao corpo político
André Green retoma Freud para descrever um narcisismo “negativo”, voltado à preservação paradoxal do Eu via autodestruição: o sujeito triunfa quando prova sua própria penúria (Green, 1993). No plano coletivo, isso se manifesta em identidades de fracasso que, segundo Bauman (2001), florescem na modernidade líquida: vínculos precários, promessas instáveis e insegurança crônica geram necessidade de narrativas que ofereçam coesão – mesmo que pela dor compartilhada.
No Brasil, o velho complexo de vira-lata (Nelson Rodrigues) ganha roupagem contemporânea: “não sabemos governar”, “o Estado é ingovernável”, “o brasileiro leva vantagem em tudo”. A profecia negativa legitima escolhas fiscais contraproducentes, pois confirma a autoimagem de indignidade – e, ao mesmo tempo, absolve lideranças de responsabilidade sistêmica.
3. Populismo fiscal e economia do desastre
Populismo fiscal é a prática de gerar benefícios concentrados no presente às custas de custos difusos no futuro (Alesina & Tabellini, 2008). Entre 2011 e 2023, o Brasil abriu mão de R$ 1,2 trilhão em renúncias tributárias (Receita Federal, 2024) – desonerações de folha, subsídios ao diesel, isenção de setores intensivos em lobbying. Tais medidas:
• Produzem sensação de ganho imediato (emprego salvo, preço contido, parcela reduzida);
• Geram manchetes favoráveis e capital eleitoral;
• Transmitem a ideia de um “Estado provedor” mesmo sem base financeira.
À luz do narcisismo de morte, observa-se: cada “vitória” populista reforça a imagem de nação disfuncional que necessita de remendos contínuos – alimenta-se o ciclo autodestrutivo que confirma a própria carência.
4. Mídia, polarização e espetáculo da crise
A mediatização intensifica o processo. Bauman (2005) descreve sociedades que “consomem” insegurança como entretenimento. No Brasil, a cada frustração macroeconômica (déficit recorde, rebaixamento de rating, rombo previdenciário), circula narrativa de “terra arrasada” atribuída ao adversário ideológico. O desastre vira commodity eleitoral: candidato X promete “passar o trator” nos gastos; Y, “furar o teto” em nome do social. O debate público reduz-se a binarismos.
Aqui, o narcisismo de morte opera como validador retórico: “só minha catástrofe é legítima; só eu posso salvá-lo se você me entregar o próximo ciclo de poder”. Políticas responsáveis, que exigem sacrifícios distribuídos e horizonte de longo prazo, carecem de apelo dramatúrgico.
5. Impacto psicossocial: violência, serviços públicos, desesperança
Déficits persistentes comprimem investimento em infraestrutura, saúde e educação. Segundo o Ipea (2024), a taxa de atendimento de esgoto avançou apenas 2 p.p. em dez anos, e 46 % dos homicídios relacionam-se a disputas por serviços urbanos. Na chave greeniana, o Estado-sujeito reitera sua incapacidade de suprir necessidades básicas, reestimulando o sentimento de indignidade e a busca de soluções imediatistas.
Jovens trabalhadores convivem com informalidade de 39 % (PNAD, 2025) e crédito rotativo a 400 % a.a.; sem perspectiva de estabilidade, aderem ao “modo sobrevivência”: preferência absoluta pelo presente em detrimento de poupança, estudo ou engajamento cívico prolongado. O narcisismo de morte converte-se em ethos pragmático: “viver do jeito que dá” – eco de um Estado que “governa do jeito que dá”.
6. Sair do espelho: pistas para quebrar o ciclo
1. Repolitizar o orçamento: simplificar a linguagem fiscal e vincular números a serviços concretos (quantas creches cabem num ponto de renúncia?).
2. Regras anticíclicas neutras: resultado estrutural combinado a conselho fiscal independente reduz espaço para populismo (Debrun et al., 2018).
3. Educação midiática-afetiva: letramento crítico para neutralizar narrativas alarmistas e converter pulsões destrutivas em práticas colaborativas.
4. Pactos federativos: dividir ganhos e perdas de reformas diminui o incentivo de transferir a conta ao sucessor.
5. Cultura da integridade: transparência radical nas compras públicas e rastreabilidade digital de emendas parlamentares reduzem a recompensa do colapso fabricado.
7. Conclusão
O persistente déficit brasileiro não é mero erro técnico, mas sintoma de um narcisismo de morte coletivo: política, mídia e parte da sociedade obtêm ganhos simbólicos ao reiterar a narrativa da insuficiência – posição que promete redenção futura enquanto prorroga o colapso. Romper o círculo implica deslocar o gozo destrutivo para pactos de cuidado e longo prazo, demandando reformas institucionais e trabalho ético sobre nossas pulsões.
Referências:
• Alesina, Alberto; Tabellini, Guido. Bureaucrats or Politicians? Cambridge: Harvard University Press, 2008.
• Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
• Bauman, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
• Banco Central do Brasil. Relatório de Estabilidade Fiscal, 1º semestre de 2025. Brasília: BCB, 2025.
• Debrun, Xavier et al. Fiscal Rules, Public Investment and Growth. IMF Working Paper 18/12, 2018.
• Green, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
• Green, André. O desmentido. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
• Ipea. Infraestrutura social no Brasil: diagnóstico e perspectivas. Brasília: Ipea, 2024.
• Nelson Rodrigues. A cabra vadia – novas confissões. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.
• PNAD Contínua. Microdados Trimestre Móvel, fev-abr 2025. IBGE, 2025.
• Receita Federal do Brasil. Relatório de Gastos Tributários 2024. Brasília: RFB, 2024.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente, autor do projeto “Mais perto da ignorância”, dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Criador do blog homônimo, investiga as interseções entre economia política e subjetividade na contemporaneidade.
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