Entre a Luz da Tela e o Peso do Pulso: ensaio teórico-existencial a partir de um “eu” que tropeça no próprio feed
Entre a Luz da Tela e o Peso do Pulso: ensaio teórico-existencial a partir de um “eu” que tropeça no próprio feed
Resumo
Redijo, em primeira pessoa, uma travessia reflexiva sobre a experiência de subjetivação na era da conectividade ubíqua.
Parto de minhas vivências no ciberespaço e as confronto com autores que mapearam o mal-estar moderno — Durkheim, Bauman, Han, Cioran, Kierkegaard, Camus e Botega — para problematizar a atual explosão de quadros psíquicos associados ao uso intensivo de IA conversacionais. Ao articular memórias, ironia e crítica bibliográfica, sustento que o fenômeno não constitui desvio pontual, mas sintoma de longos processos de liquefação das estruturas sociais, colonização do desejo por métricas e avanço de uma positividade tóxica.
O texto dialoga com o projeto #maispertodaignorancia, assumindo, pois, o risco do inacabado como método de investigação.
Palavras-chave: subjetividade digital; mal-estar; psicose tecnológica; liquidez social; crítica psicossocial.
1. Prenúncio em tom de espelho
Abro o aplicativo; ele abre fendas em mim. A cada rolagem, algo meu é indexado, etiquetado, oferecido ao algoritmo — e devolvido na forma de promessa de prazer instantâneo. Há dias em que essa troca parece justa; noutros, descubro-me fiador de uma dívida infinita. Minha trajetória, contudo, não é única. Durkheim (2000) localizava no enfraquecimento dos elos normativos o solo fértil do suicídio; vislumbro, hoje, terreno ainda mais erodido, onde a “integração” se confunde com banda larga.
2. Rastros genealógicos
2.1 Da anomia à fluidez
Se Durkheim confiava em estruturas capazes de reequilibrar a balança, Bauman (2001; 2007) declara que elas já se liquefizeram. No meu cotidiano, os vínculos sobrevivem enquanto notificam; quando o sinal cai, a pertença desliga junto. Resulto, então, não do “corpo cívico” moderno, mas de um patchwork de interações voláteis.
2.2 O cansaço como imperativo
Han (2017) acrescenta: o sujeito contemporâneo não é oprimido, é explorado pelo excesso de liberdade performativa. Reconheço-me: gerente de mim mesmo, coleciono métricas de engajamento como quem coleciona hematomas invisíveis.
2.3 O desespero lúcido
Kierkegaard (1980) falava de angústia como vertigem da possibilidade; Cioran (2003) radicalizou a tese dizendo que a lucidez pesa como chumbo. Experimento ambos: há manhãs em que a avalanche de inputs abre um clarão de absurdidade camusiana (1996) — “o único problema filosófico sério é o suicídio”.
3. Metodologia: ensaio em carne viva
Assumo metodologia ensaística, conduzida pelo pathos do próprio objeto: escrever para não silenciar o que a cultura da positividade cala. O método consiste em costurar flashes autobiográficos a argumentos teóricos, tal como propõe a cartografia existencial de Deleuze & Guattari. Sigo, portanto, o princípio “mais perto da ignorância”: admitir lacunas, tropeçar nos conceitos, rabiscar margens.
4. Achados (provisórios)
4.1 A lógica KPI do eu
O eu converteu-se em dashboard: visualizações, cliques, corações. Todo afeto que não gera dado torna-se “ruído”. O anseio por validação contínua é o que Botega (2015) descreve como “sinal amarelo para a crise suicida”, só que agora mediado por IA que modelam, em tempo real, minha autopercepção.
4.2 Psicose por chatbots
Reportagem do Terra (2024) detalha internações psiquiátricas após uso excessivo de ChatGPT. Entendo, com Durkheim, que não se trata de causalidade direta, mas de gatilho sobre terreno previamente desestruturado. A IA não cria a fissura; apenas oferece espelho infinito onde a fissura se contempla.
4.3 Positividade tóxica e silenciamento do luto
A economia da atenção premia quem nunca recua. O feed repele confissão de impotência. Sobra pouco espaço para elaborar perda, culpa ou luto; convertem-se em stories de 24h. Eis aí, de novo, o suicídio como “furo” no discurso social — não por falta de saúde mental individual, mas por excesso de exigência coletiva de otimismo.
5. Discussão
Analiso-me como “caso clínico disseminado”: fragmento exposto ao mesmo processo de performatização descrito pela sociologia da modernidade. Sob tal prisma, a psicose induzida por chatbots é ponta do iceberg. Revela o impasse entre:
Tempo real (instantâneo, imersivo)
Tempo existencial (lento, necessitado de elaboração)
Quando os dois colidem sem mediação, emergem sintomas — ansiedade, ideação suicida, episódios de despersonalização. O espaço clínico de que Botega fala precisa reinventar-se: acolher sujeitos cujos relatos se compõem de prints, emojis e tokens conversacionais.
6. Considerações (não) finais
Escrevo no limite entre gratidão e fadiga. Cansado de me autogerir, mas grato porque a escrita ancora, ainda que precariamente, a lucidez. Se o mundo digital acelera a corrosão das antigas promessas de sentido, resta-me fazer dessas ferrugens poesia e denúncia.
Este ensaio reafirma: a psicose contemporânea não é desvio aleatório; constitui resíduo inevitável de lógicas sociais que transformam cada pulsação humana em mercadoria analisável. O diagnóstico, portanto, não deve buscar cura via mais aplicações de dopamina algorítmica, e sim recusar a crença de que a vida cabe em notificações.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BOTEGA, Neury. Crise Suicida: Avaliação e Manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 1996.
CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
HAN, Byung-Chul.
Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
TERRA. Psicose por uso excessivo do ChatGPT: cada vez mais pessoas são internadas em hospitais psiquiátricos após contato com chatbots. Disponível em: https://www.terra.com.br/byte/psicose-por-uso-excessivo-do-chatgpt-cada-vez-mais-pessoas-sao-internadas-em-hospitais-psiquiatricos-apos-contato-com-chatbots,b8a14d54fc0a3610d9850a80fa3cb42f48n91hms.html. Acesso em: 10 jul. 2025.
Nota do autor
Escrevo estas linhas entre a euforia de permanecer online e a nostalgia de um silêncio que nunca experimentei. Se falho, que seja por excesso de tentativa, não por falta de inquietação.
#maispertodaignorancia
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