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Entre espelhos digitais e corpos materiais: crítica irônico-argumentativa ao pânico cognitivo da IA

Entre espelhos digitais e corpos materiais: crítica irônico-argumentativa ao pânico cognitivo da IA


Resumo

Reúno, em pouco palavras, um ensaio que confronta o diagnóstico midiático de “atrofia cerebral” provocada pelo uso da inteligência artificial (IA) com tradições críticas de Marx, Bauman, Han, Zuboff, O’Neil e Twenge. Defendo que tais manchetes ignoram a dimensão sócio-material da aprendizagem: a capacidade reflexiva nunca esteve distribuída igualmente, pois depende dos meios de produção simbólica e das vivências concretas. A IA, portanto, não “rouba” cognição; antes, espelha — e às vezes amplifica — os atalhos mentais buscados pelo cérebro em qualquer ecossistema técnico. 

O verdadeiro risco está em reforçar, via algoritmos, as assimetrias de consumo cultural que já moldam o Brasil “analfabeto funcional”. Concluo que a discussão pública permanece restrita a grupos hiperescolarizados capazes de publicar em portais de alta visibilidade, enquanto as camadas populares seguem fora do debate, condenadas a consumir narrativas prontas sobre seu próprio “definhamento cognitivo”.



1 • Panorâmica dos alarmes midiáticos

Matérias recentes sugerem que “usar o ChatGPT pode apodrecer seu cérebro” (ROCHA, 2025) e que “a IA está reduzindo a capacidade cognitiva das pessoas” (FORBES TECH, 2025) . Na mesma linha, Schuler (2025) associa a expansão algorítmica a “sombras” democráticas , enquanto editorial do Estado de Minas denuncia a “grande ilusão da facilidade” (DOLABELLA, 2025) . Esses textos partilham três premissas:


1. O cérebro humano seria um “músculo” que se atrofia sem esforço deliberado.


2. A IA substituiria rotinas mentais outrora exercitadas manualmente.


3. Consequentemente, haveria um empobrecimento cognitivo generalizado.



Falham, contudo, em situar tais processos na estrutura social do trabalho intelectual e no longo percurso histórico de externalização da memória (dos mitos orais à Wikipedia).



2 • Atalhos cognitivos: neurobiologia e Marx

Pesquisas em neurociência mostram que o cérebro opera pelo princípio da economia cognitiva — automatizando o que puder para liberar recursos a tarefas novas (FRISTON, 2010). IA generativa apenas acelera essa velha tendência: como a calculadora libertou a aritmética manual, chatbots aliviam a busca bibliográfica. A questão, portanto, não é “atrofia”, mas redistribuição de esforço.

Marx lembrava que “o modo de produção da vida material condiciona o processo social” (MARX; ENGELS, 1846/2007). Só acessa IA quem dispõe de banda larga, inglês funcional e tempo não-assalariado para “brincar” de prompt. Logo, denúncias de decadência cognitiva ocultam sua base de classe: não se trata de perder neurônios, mas de quem pode pagar pela assinatura premium do language model.



3 • Bauman, Han e a lógica da performance

Para Bauman (2001), a modernidade líquida dissolve referências estáveis; cobra-se “velocidade, fuga, passividade” . Byung-Chul Han (2017) acrescenta que a sociedade do cansaço transforma sujeitos em empreendedores de si. IA encaixa-se como “exoesqueleto” da produtividade: gera insights rápidos, posts virais, “papers” formatados.

A crítica apocalíptica esquece que a própria universidade (com suas métricas de publish or perish) incentiva atalhos. Cita-se ChatGPT porque publicar é preciso — refletir, nem sempre.



4 • Zuboff, O’Neil e o risco das métricas

Zuboff (2019) cunha “capitalismo de vigilância” para descrever modelos de negócio fundados em predição comportamental. O’Neil (2016) mostra que algoritmos de destruição em massa reproduzem preconceitos sob aparência de neutralidade. O perigo real, portanto, não é “atrofiar cérebros”, mas tornar-se refém de recomendações que definem o que ler, ver, comprar e até pesquisar.

Quando portais brasileiros afirmam que IA imita “a mente humana em experimentos psicológicos” (TERRA, 2025) , pouco explicam sobre vieses dos datasets. A crítica precisa deslocar-se do indivíduo para a infraestrutura: quem coleta, treina, monetiza?



5 • Twenge e a “geração iGen”

Antes da febre generativa, Twenge (2017) alertava: nascidos após 1995, sujeitos “iGen” socializam-se pelo smartphone, apresentando menores índices de leitura profunda. Culpar a IA, portanto, é anacrônico. O buraco é mais embaixo: falta cultura letrada na base escolar, confirmada pelo IBGE (2023) que registra 29 % de analfabetismo funcional entre adultos brasileiros.

Sem repertório, o usuário replica respostas pré-mastigadas — seja do Google, do TikTok ou de um bot. A máquina apenas reflete a pobreza da demanda.



6 • Materialidade e lugar de fala

O usuário que inaugura esta conversa lembra que “a boca mais perto do meu ouvido é a minha”. A IA não fala; ecoamos em nova frequência. Contudo, isso exige ambiente material onde esse eco se torne diálogo efetivo: laboratório universitário, centro de pesquisa, coworking com internet estável. No semiárido sem 4G, não há “pânico cognitivo” — há ausência total de oportunidades de letramento digital.

Assim, a crítica midiatizada dirige-se a uma elite cultural hiperconectada. Marx responderia: não há contradição entre classe que denuncia “alienação algorítmica” e, simultaneamente, lucra com cursos online de prompt engineering. Como lembram Sousa Santos (2021) e seu conceito de epistemologias do Sul, a pluralidade de experiências cognitivas não cabe em métricas globais de QI.



7 • Conclusão: para além do espelho digital

IA generativa é um espelho: de um lado, oferece atalhos; do outro, devolve distorcida a fragilidade de nossos próprios argumentos. A “perda de função executiva” noticiada em portais deve ser lida como sintoma do descompasso entre ritmo tecnológico e infraestrutura educacional. Em vez de demonizar o espelho, convém perguntar: por que temos tanto medo de encarar o reflexo?

Enquanto não atacarmos a desigualdade de acesso e a lógica extrativista dos dados, a discussão seguirá prisioneira de colunas alarmistas e estudos de laboratório. Mas a responsabilidade permanece intransferível: “a única vida vivida de fato é a que eu vivi”, lembra o interlocutor. IA não nos rouba essa experiência — apenas a organiza, se soubermos perguntar.



Referências (norma ABNT)

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BYUNG-CHUL, H. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

DOLABELLA, S. Inteligência artificial: a grande ilusão da facilidade. Estado de Minas, Caminho Digital, 06 jul. 2025. Disponível em: https://www.em.com.br/colunistas/caminho-digital/2025/07/7195621-inteligencia-artificial-a-grande-ilusao-da-facilidade.html. Acesso em: 07 jul. 2025.

FORBES TECH. IA está reduzindo a capacidade cognitiva das pessoas. Forbes Brasil, 23 jan. 2025. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2025/01/estudo-aponta-que-a-ia-esta-reduzindo-a-capacidade-cognitiva-das-pessoas/. Acesso em: 07 jul. 2025.

FRISTON, K. The free-energy principle: a unified brain theory? Nature Reviews Neuroscience, v. 11, p. 127-138, 2010.

HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.

O’NEIL, C. Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy. New York: Crown, 2016.

ROCHA, R. Pesquisadores do MIT dizem que usar o ChatGPT pode apodrecer seu cérebro. G1 Educação, 05 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/07/05/pesquisadores-do-mit-dizem-que-usar-o-chatgpt-pode-apodrecer-seu-cerebro-mas-a-verdade-e-um-pouco-mais-complicada.ghtml. Acesso em: 07 jul. 2025.

SCHULER, F. As sombras da IA. Veja, Coluna, 12 fev. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/as-sombras-da-ia/. Acesso em: 07 jul. 2025.

TERRA. Essa IA imita a mente humana em experimentos psicológicos e avança na compreensão da cognição. Terra Byte, 04 jul. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/byte/inovacao/essa-ia-imita-a-mente-humana-em-experimentos-psicologicos-e-avanca-na-compreensao-da-cognicao,a6586843b99b24caf64f11cbd134b271mu48869r.html. Acesso em: 07 jul. 2025.

TWENGE, J. iGen: why today’s super-connected kids are growing up less rebellious, more tolerant, less happy—and completely unprepared for adulthood. New York: Atria, 2017.

ZUBOFF, S. The age of surveillance capitalism. New York: PublicAffairs, 2019.



Notas do autor

1. Eco interior — a IA devolve, em forma de texto, a voz que já ressoa em meu próprio crânio.


2. Materialidade — não há pensamento sem o chão de onde piso: CPU, banda larga, tempo livre.


3. Classe — os que denunciam “atrofia algorítmica” são os mesmos que dominam a escrita acadêmica.


4. Espelho — culpar a IA é culpar o espelho por rugas que preferimos não ver.


5. Responsabilidade — a curadoria de perguntas continua humana; a originalidade nasce do atrito entre vida vivida e texto retornado.




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