A Insuportável Leveza do Mal-Estar: Uma Crônica Pós-Moderna
Sempre fui fascinado pela capacidade da humanidade de produzir discursos grandiosos sobre sua própria insignificância.
No século XX, Freud já alertava sobre um mal-estar intrínseco à civilização, uma espécie de preço inevitável que pagamos pela convivência social, trocando parte de nossa liberdade por segurança e bem-estar coletivo (Freud, 2012).
Décadas depois, Zygmunt Bauman, em seu provocativo ensaio sobre o mal-estar pós-moderno, ampliou a angústia freudiana para uma sociedade fragmentada, líquida e repleta de relações efêmeras (Bauman, 2012).
Vivemos hoje uma fase paradoxal: quanto mais tecnologia acumulamos para supostamente conectar e facilitar nossa existência, mais isolados e ansiosos nos tornamos.
Shoshana Zuboff descreve essa era como a do capitalismo de vigilância, na qual nossa intimidade é mercantilizada e consumida por algoritmos que pretendem prever nosso comportamento (Zuboff, 2021).
Se o mal-estar moderno descrito por Freud nasceu da repressão dos desejos em nome do coletivo, o nosso pós-moderno surge da repressão digital da nossa autonomia em nome do lucro.
Parece irônico perceber que, hoje, mesmo os aspectos mais triviais da vida — nossas preferências musicais, amorosas e culinárias — se transformam em dados comercializáveis. Vivemos em bolhas algorítmicas que filtram o mundo para nós, reduzindo o desconforto, mas também a nossa liberdade.
O que deveria nos libertar acaba nos aprisionando, numa espécie de "prisão de conforto", onde a ansiedade é permanente, mas sutilmente anestesiada pelo entretenimento contínuo e consumo constante.
Bauman define bem nossos personagens contemporâneos: turistas e vagabundos (Bauman, 2012). O turista pós-moderno consome experiências sem compromisso profundo, enquanto o vagabundo é descartado pelas engrenagens do mercado e condenado à marginalidade. Ambos refletem a fragmentação da existência atual, onde as relações são superficiais e descartáveis, tornando-nos incapazes de sustentar vínculos duradouros ou lidar com conflitos mais profundos.
É difícil não rir da situação.
Criamos ferramentas tão avançadas, com promessas tão grandiosas, apenas para perceber que o resultado final é um mal-estar renovado e digitalmente amplificado.
Freud talvez sorrisse diante da ironia dessa "civilização avançada"; Bauman, certamente, balançaria a cabeça com uma resignação filosófica diante da nossa insistência em repetir os mesmos erros com novos meios tecnológicos.
Talvez seja exatamente isso: estamos presos em um ciclo infinito de reinvenção do nosso mal-estar. Nossos avanços tecnológicos nunca resolvem a questão existencial fundamental, apenas deslocam a angústia para novas formas de expressão.
De Freud a Zuboff, passando por Bauman, a constatação é a mesma: o que muda é a embalagem, não o conteúdo.
No fim, talvez a única saída seja aceitar com ironia essa condição eterna e incômoda, admitindo que o desconforto, mais do que um erro a ser corrigido, é a condição essencial da nossa existência.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e autor do projeto "Mais Perto da Ignorância", dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Criador e pesquisador independente no blog "Mais Perto da Ignorância".
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