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A FANTASIA DO PENSAMENTO AUTOMATIZADO: UMA RESPOSTA CRÍTICA AO NOVO MODELO DE IA QUE "PENSA COMO UMA PESSOA

A FANTASIA DO PENSAMENTO AUTOMATIZADO: UMA RESPOSTA CRÍTICA AO NOVO MODELO DE IA QUE "PENSA COMO UMA PESSOA"


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Em julho de 2025, a CNN Brasil publicou uma matéria intitulada "Novo modelo de IA consegue pensar como uma pessoa". O texto, disponível em 

[https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/]

(https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/),

apresenta os avanços do modelo de inteligência artificial o1 da OpenAI, destacando sua capacidade de "raciocinar por mais tempo, considerar diferentes estratégias e revisar seus erros". Em outras palavras, de "pensar". Mas o que, afinal, significa pensar? E quem ganha com a disseminação dessa narrativa tecnicista?

 

Essa análise parte das reflexões propostas pelo projeto "Mais Perto da Ignorância", que procura tensionar discursos midiáticos e tecnológicos a partir de uma perspectiva crítica, filosófica e simbólica. Nosso objetivo não é combater a existência da inteligência artificial, mas desvelar as estruturas que sustentam sua promessa de onisciência, neutralidade e, agora, humanidade.

 

Como bem disse Byung-Chul Han (2021), vivemos uma época em que as coisas se tornaram "não-coisas": desmaterializadas, aceleradas, sem permanência simbólica. O pensamento, nesse contexto, deixa de ser um processo de elaboração temporal para se tornar um produto de desempenho. Se a IA "pensa como humano", qual humano estamos tomando como referência? O pensador reflexivo, contraditório, angustiado? Ou o sujeito performático, produtivo, automático?

 

Essa diferença é crucial. Como aponta Kierkegaard (2010), a angústia é a possibilidade do ser humano diante do abismo da liberdade. Uma IA não sofre angústia. Ela apenas simula alternativas. E toda simulação é feita com base em dados anteriores. Logo, não há propriamente criação, mas combinação probabilística. Isso não é pensamento. Isso é processamento.

 

A matéria da CNN celebra o desempenho do modelo o1 em testes de física e matemática. Mas pensar vai além da resolução de problemas complexos. Pensar é hesitar. É atravessar o tempo com uma questão que incomoda. É resistir à resposta imediata. Zygmunt Bauman (1998) já denunciava a pressa como um sintoma da liquidez contemporânea. A IA, nesse sentido, não pensa como uma pessoa. Ela apenas se encaixa na exigência contemporânea de desempenho cognitivo.

 

O que Cathy O'Neil (2016) chama de "algoritmos de destruição em massa" são sistemas matemáticos opacos que definem vidas, sem permitir contestação. Quando dizemos que uma IA "pensa como humano", mascaramos essa estrutura autoritária com uma roupagem humanizada. E quando usamos esse modelo para validar discursos, identidades, narrativas e diagnósticos, estamos terceirizando a própria experiência de pensar.

 

Shoshana Zuboff (2019) nos lembra que vivemos sob o capitalismo de vigilância. Cada clique, cada hesitação, cada gesto na tela é convertido em dado, que por sua vez é comercializado. O modelo o1 da OpenAI só existe porque houve uma coleta massiva e histórica de informação humana. E ironicamente, agora ele se torna mais eficaz que os humanos em certas tarefas. Mas quem autorizou esse processo? Qual foi o tempo de elaboração política e simbólica antes da adoção desse novo "pensador"?

 

O problema aqui é menos a existência da IA e mais a ausência de tempo. Como escrevemos em outras oportunidades: o que está em jogo não é a mentira, é a impossibilidade de verificar a veracidade. Vivemos numa crise da narrativa (Han, 2023), onde não há mais tempo para contar uma história. Há apenas stories. Performance. Clipping. Rendimento.

 

Quando a CNN celebra que uma IA pensa como humano, não está dizendo que a IA se humanizou. Está dizendo, na verdade, que o humano se adaptou à lógica da IA: velocidade, combinação, eficiência. O espaço da contradição, da escuta, do tropeço foi eliminado.

 

Marx (2007) dizia que a consciência humana é produto das condições materiais. E quais são as condições que produzem uma consciência algorítmica? Um tempo fragmentado, uma linguagem pasteurizada, um desejo mediado por imagens e um sistema que recompensa a produção incessante.

 

A frase que sintetiza essa análise é anônima, mas precisa: "os ausentes não terão razão". Porque neste cenário, quem não performa não existe. Quem não responde, não tem voz. Quem não aparece, é ignorado.

 

Por isso, mais do que questionar se a IA pensa como humano, precisamos perguntar:

 

* Qual humano ela representa?

* Que tipo de sociedade ela está moldando?

* Que espaço resta para a angústia, o erro, a lentidão, a elaboração?

 

A resposta não está nos dados, mas no coração da nossa própria crise simbólica.

 

E se você quiser ler a matéria original que motivou essa reflexão, ela está disponível em:

[https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/](https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/)

 

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REFERÊNCIAS

 

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

 

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

HAN, Byung-Chul. Não-coisas: encarnaço digital do mundo. Petrópolis: Vozes, 2021.

 

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: UNESP, 2010.

 

MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

 

O'NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. São Paulo: Vestígio, 2016.

 

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

 

CNN BRASIL. Novo modelo de IA consegue pensar "como uma pessoa". 2025. Disponível em: [https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/](https://stories.cnnbrasil.com.br/tecnologia/novo-modelo-de-ia-consegue-pensar-como-uma-pessoa/). Acesso em: 11 jul. 2025.

 

 

NOTA DO AUTOR:

 

 

O autor é psicólogo por formação, metalúrgico por experiência e pensador cotidiano por escolha. Idealizador do projeto Mais Perto da Ignorância, escreve com o intuito de tensionar os limites do discurso digital, provocar reflexões sobre a subjetividade em tempos de tecnologia e resgatar o valor da dúvida como gesto de resistência. Estuda o impacto da inteligência artificial na linguagem e na construção do self — sempre caminhando entre o impulso de falar e a urgência de silenciar.

 

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