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Tá tudo otimizado, mas cadê o sujeito?

Tá tudo otimizado, mas cadê o sujeito?


José Antônio Lucindo da Silva – #enxerofeed
#maispertoignorancia


Resumo

Este artigo propõe uma reflexão crítica e irônica sobre a promissora “revolução” da inteligência artificial (IA) no marketing digital, partindo da análise do artigo da revista Exame (2025), intitulado "Como a Inteligência Artificial está revolucionando o marketing digital global". 

Contrapondo os argumentos tecnofílicos com os autores que embasaram nossas discussões anteriores — Freud, Bauman, Marx, Fédida e Byung-Chul Han —, problematizamos a forma como o discurso da eficiência algorítmica está reconfigurando o sujeito contemporâneo como dado, previsão ou métrica.
 
Através de uma abordagem interdisciplinar, analisamos como o sujeito performático é capturado pela lógica do engajamento, sendo progressivamente esvaziado de conflito, desejo e materialidade.


1. Introdução: entre dados e desejos, quem apaga quem?

Em um mundo onde a inteligência artificial promete resolver desde os problemas de produção até os de autoestima, surge uma pergunta incômoda: se tudo está sendo otimizado, onde ficou o sujeito? O artigo da Exame (2025) celebra os avanços da IA no marketing digital, com destaque para eficiência, personalização e previsão de comportamentos. Aparentemente, é o melhor dos mundos.
 
Mas quando cruzamos esse entusiasmo com as reflexões de Freud, Bauman, Marx e Han, o "melhor dos mundos" se revela uma distopia travestida de dashboard.


2. A performatividade algorítmica do eu

O artigo aponta que empresas como Zalando e Michaels Stores conseguiram automatizar imagens promocionais e personalizar 95% de suas campanhas. A emoção do consumidor é prevista, o desejo é antecipado, o clique é guiado. Mas o que resta ao sujeito? Como já discutimos em Consumo, discurso e descarte, ( http://maispertodaignorancia.blogspot.com/2025/06/consumo-discurso-e-descarte-anatomia-de.html )o eu se dissolve numa performance programada. O desejo — esse incômodo freudiano — é substituído por recomendacões em tempo real.

Freud, em O mal-estar na civilização (1996), localizava o sofrimento no conflito entre pulsão e cultura. Hoje, o conflito é apagado por algoritmos que antecipam e satisfazem o desejo antes mesmo que ele se forme. A ansiedade de não saber é substituída pelo alívio sintético de já estar respondido. Mas isso é cura ou anestesia?


3. Bauman, o engajamento e o descarte do eu

Bauman (1998) já denunciava o mal-estar da pós-modernidade: o sujeito liquefeito, a identidade moldada por aparências e a relação tratada como produto. Com a IA, essa lógica não apenas se confirma: ela se automatiza. O eu não precisa mais se esforçar para parecer interessante — o algoritmo faz isso por ele.

O resultado é um eu moldado pelo engajamento: quanto mais clicado, mais desejável. Mas esse desejo não é do sujeito. É do mercado. É o desejo de ser previsível o bastante para ser monetizado e descartado. O mal-estar atual não é a repressão, é o desaparecimento do conflito: se você não performa, você não é. E se você é, não é você quem sabe.


4. Marx e a nova alienação do consumo simbólico

Marx alertava que a ideologia está nos objetos do cotidiano. O trabalho alienado produz um sujeito alienado. Hoje, não mais se consome para viver, mas se vive para consumir-se. A IA não cria apenas eficiência: cria sujeitos alienados que acreditam estar no controle de seus desejos.
O marketing algorítmico é o novo capital simbólico: você é relevante enquanto gera dado. A subjetividade virou target. A emoção virou cluster. A dor virou dado de engajamento. A dissociação entre discurso e materialidade, que já discutíamos, se aprofunda: é o fim da elaboração, da pausa, do erro.


5. Fédida, a impossibilidade do luto e a depressividade silenciosa

Jean Fédida nos alerta que a depressão é a suspensão da elaboração simbólica. E o que vemos no marketing guiado por IA é exatamente isso: uma narrativa otimizada onde não há espaço para perder, esperar ou hesitar.
O luto é negado. A demora é interpretada como falha. O tempo subjetivo foi substituído pelo tempo de carregamento do aplicativo. Como elaborar um eu real dentro dessa pressa sintética?


6. Byung-Chul Han e o desaparecimento da negatividade

Han argumenta que vivemos na era da positividade absoluta: tudo é solução, tudo é otimização. A IA se encaixa perfeitamente nesse delírio. Se você está triste, personalize um feed. Se você não vende, treine o algoritmo. Se você não performa, reconfigure seu perfil.
A negatividade — fonte da criação, da resistência, do desejo — foi expulsa. No lugar dela, temos soluções silenciosas, otimizadas, que tiram o sujeito do centro. O eu é apenas a interseção entre os dados que o sistema já sabia sobre ele.

7. Considerações finais: tudo se mede, nada se elabora
O artigo da Exame é um retrato involuntário de tudo que temos denunciado: o sujeito como dado, o desejo como produto e a performatividade como identidade. A inteligência artificial, ao invadir o marketing, não apenas revoluciona o consumo: ela transforma o consumidor em métrica.

Não há mais espaço para o sintoma, para a elaboração, para o inconsciente. A IA não quer saber o que você sente. Ela quer prever o que você vai clicar.


Referências:


BAUMAN, Zygmunt. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FÉDIDA, Jean. O luto e a obra do tempo. São Paulo: Escuta, 1992.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

EXAME. Como a Inteligência Artificial está revolucionando o marketing digital global. Exame, 2025. Disponível em:

 https://exame.com/carreira/como-a-inteligencia-artificial-esta-revolucionando-o-marketing-digital-global/. Acesso em: 5 jun. 2025.

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