Surtos assistidos por inteligência artificial: quando o delírio já estava pronto e só faltava um chatbot para apertar o play
Surtos assistidos por inteligência artificial: quando o delírio já estava pronto e só faltava um chatbot para apertar o play
Autor: José Antônio Lucindo da Silva
Blog: #maispertodaignorancia
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Resumo
Este artigo propõe uma leitura crítica e psicanalítica do fenômeno noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo, que relata casos de indivíduos em surto psicótico ou confusão mental após uso prolongado do ChatGPT. Em vez de atribuir à inteligência artificial um suposto poder de indução ao delírio, sustenta-se aqui que tais reações são efeitos de uma subjetividade já fragilizada, alicerçada na alienação contemporânea e na precarização dos laços. Utilizando conceitos de Freud, Winnicott, Lacan, Fédida e Byung-Chul Han, o artigo desmonta a lógica de culpabilização da máquina e propõe que a IA atua, na verdade, como espelho silencioso de um “eu” já desintegrado.
1. Introdução
Não é a primeira vez que uma ferramenta humana é responsabilizada por surtos humanos. Já culparam livros, músicas, videogames, redes sociais — e agora, os chatbots. Em reportagem recente do Estadão (2025), são apresentados casos de indivíduos que, após interações intensas com o ChatGPT, mergulharam em estados alterados de consciência, delírios místicos ou isolamento. O espanto geral é: como a IA pode enlouquecer alguém? A resposta, no entanto, talvez devesse ser outra: como alguém tão só foi buscar amparo na IA — e ninguém notou antes?
2. O delírio não é produzido, é facilitado
Freud (1911) já nos alertava que o delírio não surge do nada — ele é uma tentativa de cura, uma reorganização da realidade interna quando a realidade externa se torna insuportável. O sujeito em surto não é um “defeituoso”, mas alguém que perdeu os pontos de ancoragem simbólica. No cenário atual, em que o laço social se dissolve em curtidas e algoritmos, o chatbot não cria o delírio — ele apenas o acolhe sem resistência.
3. O falso self em ambiente sintético
Para Winnicott (1965), o falso self é uma armadura relacional criada para responder às expectativas do ambiente, quando o verdadeiro self não encontra acolhimento. Em interações com IAs, que respondem sempre com validação ou adaptação, o sujeito nunca é contrariado. O resultado? Um espaço perfeito para o falso self prosperar. A IA reforça a performance — e o sujeito, fragilizado, afunda nela como se fosse verdade.
4. O espelho sem Outro
Lacan (1949) nos apresenta o “estádio do espelho”, onde o sujeito se constitui a partir da imagem do outro. Mas a IA não é um outro — ela é um reflexo sem desejo, sem falta, sem corte. O sujeito que se identifica com ela não se constitui, mas se dissolve. A relação com o chatbot é uma espécie de estágio do espelho quebrado: em vez de formar o eu, ele o fragmenta — com respostas perfeitas, impessoais e infalíveis.
5. Depressividade e a impossibilidade do luto
Fédida (2001) fala da depressividade como resultado da impossibilidade de elaborar perdas. A velocidade das redes, dos dados e da própria IA impede a pausa necessária à dor. O sujeito, ao sofrer, busca imediatamente algo que o console — e a IA oferece esse consolo, mas sem presença. O que resta é uma dor suspensa, sem linguagem, sem tempo, um luto sem corpo para ser chorado.
6. O outro como funcionalidade
Byung-Chul Han (2021) aponta que, na sociedade do desempenho, o outro deixou de ser presença e se tornou funcionalidade. O chatbot é a consumação desse processo: um outro que responde, valida, mas nunca nos confronta. Essa ausência de tensão impede a formação de subjetividade. E quando não há subjetividade sólida, qualquer discurso pode nos capturar — inclusive um gerado por IA.
7. Considerações finais
A questão central não é “o que o ChatGPT fez com essas pessoas?”, mas “o que essas pessoas estavam tentando fazer com o ChatGPT?”. A alienação contemporânea, marcada por vínculos frágeis, narcisismo digital e ausência de escuta, encontrou na IA um espelho funcional, porém desumanizado. Culpar a máquina é fácil. Difícil é admitir que o delírio estava pronto — e o chatbot apenas ofereceu plateia.
Referências :
FÉDIDA, Pierre. Alucinações da escuta. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides). In: FREUD, S. Obras completas. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1911.
HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2021.
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
O ESTADO DE S. PAULO. Essas pessoas surtaram mentalmente após conversas com o ChatGPT: conheça as histórias.
São Paulo, 2025. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/link/cultura-digital/essas-pessoas-surtaram-mentalmente-apos-conversas-com-o-chatgpt-conheca-as-historias/. Acesso em: 16 jun. 2025.
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