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Quando o Amor Vira Dados: Uma Sofrência Algorítmica em Rede



Quando o Amor Vira Dados: Uma Sofrência Algorítmica em Rede

Autor José Antônio Lucindo da Silva 
#maispertoignorancia
15/06/2025


Resumo

O presente artigo busca tensionar a superficialidade das manifestações afetivas nas redes sociais e refletir sobre como a ausência de estrutura educacional no Brasil condiciona a produção discursiva sobre o amor. A partir do estudo "Narrativas afetivas", conduzido por psicanalistas brasileiras, observa-se que a maior parte dos conteúdos afetivos veiculados online são atravessados por sentimentos negativos. Essa constatação, quando lida à luz do analfabetismo funcional e digital no país, levanta questionamentos sobre a qualidade das construções simbólicas mediadas por tecnologias. O amor, então, deixa de ser vivido e passa a ser performado — não por escolha, mas por incapacidade de elaborá-lo fora do circuito da dor.


1. Introdução

Se amar já era difícil fora da tela, imagine agora, com filtros, hashtags e stories que duram menos que uma paixão de adolescente. O amor, esse velho conhecido da filosofia, da arte e da psicanálise, virou métrica de engajamento. E quando os dados falam, quem ama cala.
Segundo a pesquisa “Narrativas afetivas: como o brasileiro traduz o amor” (TILKIAN; HOLPERT, 2025), quase metade dos discursos afetivos nas redes sociais está atravessada por afetos negativos, como raiva, medo e tristeza. Seria isso um sintoma de um país adoecido emocionalmente ou apenas mais um reflexo do que acontece quando se cruza algoritmos com carências estruturais de base?


2. Do afeto à postagem: a ilusão da linguagem sem sujeito

Freud (1915) já nos alertava: a palavra carrega um feitiço. Mas como exercer esse feitiço se a maioria dos sujeitos já não possui o vocabulário necessário para nomear sua própria dor? 
O Brasil, com um índice de analfabetismo funcional ainda em torno de 29% (INAF, 2021), parece condenado a expressar-se por meio de memes e sofrência. Não se trata de romantizar a dor, mas de reconhecer que há algo de perverso em tentar elaborar vínculos genuínos em plataformas cujo objetivo é transformar afetos em estatísticas de clique.

Se a IA é quem analisa, organiza e devolve o discurso sobre o amor, cabe perguntar: quem a ensinou? A resposta, infelizmente, está nos dados da educação brasileira: apenas 20,5% da população possui ensino superior completo (IBGE, 2024). Ou seja, estamos terceirizando à máquina o trabalho de pensar o afeto que nós mesmos nunca aprendemos a narrar.


3. O amor como ruído: entre a ausência de escuta e a pressa por performance

A presença de discursos amorosos negativos nas redes não é uma aberração digital. Pelo contrário, é uma consequência lógica de um sistema onde o tempo de escuta foi substituído pela velocidade do post. O cotidiano relacional, que ainda insiste em existir, aparece como resistência nos dados: 23,6% dos discursos falam dos pequenos gestos — o café compartilhado, o pé entrelaçado — mas mesmo esses gestos estão contaminados pela tensão.
Byung-Chul Han (2015) nos lembra que vivemos na era do “cansaço”, onde o desempenho substitui o desejo, e até mesmo o amor entra na lógica da produtividade emocional. Nesse sentido, o que o estudo aponta como negatividade afetiva não é uma exceção, mas o sintoma mais bem acabado de uma sociedade que desistiu de escutar antes mesmo de amar.


4. Considerações finais: O amor morreu ou só está sem plano de dados?

Talvez o amor não tenha morrido. Ele só está sem sinal, tentando carregar uma conexão simbólica onde só há ruído e sarcasmo. A ironia — muitas vezes acusada de superficialidade — é hoje o último refúgio dos que ainda tentam falar de amor sem cair na positividade tóxica dos coachs ou na banalização das dores em formato de reels.
O problema, como sempre, não está no algoritmo, mas naquilo que alimentamos nele. A IA, com toda sua esperteza programada, apenas reflete o que entregamos. O desespero, a desilusão, a raiva? Estão todos ali porque não tivemos tempo (ou educação) para elaborá-los de outra forma.
Se Freud, Han, ou até mesmo Cioran fossem usuários do X ou Instagram, provavelmente diriam: “O amor não morreu, só foi sequestrado por quem nunca soube soletrá-lo”.


Referências:

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914 [1915]). In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre técnica da psicoterapia psicanalítica. Obras completas, v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2024. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2024. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 15 jun. 2025.

INAF – Indicador de Analfabetismo Funcional. Relatório 2021: Alfabetismo e mundo digital. São Paulo: Instituto Paulo Montenegro, 2021. Disponível em: https://acaoeducativa.org.br. Acesso em: 15 jun. 2025.

TILKIAN, Carol; HOLPERT, Camila. Narrativas afetivas: como o brasileiro traduz o amor. Folha de S. Paulo, 12 jun. 2025. Disponível em:
 
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/06/maioria-dos-brasileiros-e-pessimista-nas-redes-sociais-em-relacao-ao-amor-diz-estudo.shtml. Acesso em: 15 jun. 2025.


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