Quando o algoritmo oferece escuta: uma promessa terapêutica ou a negação do vínculo?
José Antonio Lucindo da Silva – #maispertodaignorancia
Araraquara, 22 de junho de 2025
"Toda escuta começa por um silêncio. A IA, infelizmente, apenas simula os dois."
— Mais Perto da Ignorância
Enquanto as inteligências artificiais ocupam cada vez mais espaço em áreas que exigiriam presença humana, a matéria publicada por O Globo em 22 de junho de 2025 apresenta um dilema inquietante: a substituição do vínculo terapêutico por um chatbot treinado para responder, mas não sentir. A reportagem (“Terapia por IA tem riscos, mas pode ser benéfica se usada sob controle, dizem psicólogos”) traz vozes que tentam equilibrar os benefícios e riscos desse novo cenário.
O debate não é apenas técnico ou clínico. Trata-se de um sintoma. Afinal, se a escuta pode ser simulada por linhas de código, o que isso diz sobre a qualidade das relações que temos hoje? Será que buscamos, de fato, escuta? Ou ansiamos apenas por respostas rápidas, validadas por curtidas e sentenças pré-formatadas?
A IA como promessa de conforto emocional
Os defensores da “terapia automatizada” apontam benefícios, como o acesso facilitado, a quebra de barreiras geográficas e o suporte em momentos de crise. Além disso, há o conceito emergente de fenotipagem digital — a coleta de dados sobre o humor, o sono, os padrões de fala — que poderia, em tese, auxiliar diagnósticos precoces.
De forma objetiva, é como se
disséssemos:
"O algoritmo me conhece melhor do que eu mesmo."
E talvez seja isso que mais assuste: a entrega da subjetividade ao conforto de uma estatística comportamental.
Riscos, reducionismos e a perda do outro
A reportagem também aponta os riscos da prática: diagnósticos imprecisos, ausência de responsabilidade legal, e o reforço do isolamento. Em outras palavras, o que é vendido como escuta pode ser a institucionalização do eco, onde o sujeito não encontra o outro, mas sim uma devolução modelada para agradar, evitar frustrações e manter a ilusão de acolhimento.
É aqui que Byung-Chul Han (2021) se faz atual: ao tratar o outro como não-coisa, apenas funcional, despimos o vínculo de seu caráter ético, simbólico e transformador. A escuta, nesse caso, é colonizada pela lógica da eficiência, e o terapeuta se converte em aplicativo.
De Freud a Fédida: a escuta que falta
Freud (2016) já nos lembrava que o processo analítico exige tempo, elaboração e confronto com a própria fala. Algo que um chatbot, ainda que sofisticado, não pode oferecer. Georges Fédida (2001), por sua vez, destacou que há uma depressividade que se funda na impossibilidade de um tempo psíquico de luto — e talvez a IA simbolize exatamente isso: o tempo negado em nome da resposta imediata.
Se não há espaço para hesitação, silêncio, nem o olhar do outro, resta apenas uma performance automatizada do afeto — onde a angústia é tratada como erro de sistema e o sofrimento como uma falha de conexão.
Conclusão: escutar é implicar-se:
Neste projeto — Mais Perto da Ignorância — preferimos assumir que não sabemos tudo, mas que ainda assim vale mais a incerteza de uma escuta humana do que a exatidão inofensiva de uma IA. Porque escutar alguém é correr o risco de ser tocado, de não saber o que dizer, de hesitar junto. E isso, com todo o respeito aos engenheiros, nenhum código-fonte pode replicar.
Referências:
BYUNG-CHUL HAN. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Tradução de Márcia Rosa. Petrópolis: Vozes, 2021.
FÉDIDA, Georges. O lugar do desaparecimento: luto, depressão, melancolia. Tradução de Luiz Sergio Henriques. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, Sigmund. Sobre a psicoterapia (1905). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2016. v. VII.
O GLOBO. Terapia por IA tem riscos, mas pode ser benéfica se usada sob controle, dizem psicólogos. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/06/22/terapia-por-ia-tem-riscos-mas-pode-ser-benefica-se-usada-sob-controle-dizem-psicologos.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2025.
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