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Plantões de 24 Horas e a Ilusão do Conceito 5


Plantões de 24 Horas e a Ilusão do Conceito 5


#maispertodaignorancia

Eu : Parece que o MEC carimbou nota 5 na testa da faculdade, mas esqueceu de medir as olheiras dos alunos. Enquanto isso, internos da Unoeste Guarujá contam que viraram tapete de corredor hospitalar, dormindo no chão para cumprir plantões de 24 h sem direito a travesseiro — e ainda ouviram que isso é “formação de excelência”.

 

Silvan : Excelência para quem, caro narrador? Byung-Chul Han já alertava que o “animal laborans” moderno explora a si mesmo com a alegria histérica do “yes we can”, até infartar a própria alma. Ganhamos um selo de qualidade que funciona como ansiolítico institucional: ninguém questiona o cansaço, apenas refere-se a ele como requisito curricular.

 

Eu : Não à toa, a OMS catalogou o burnout como “fenômeno ocupacional”, mas, claro, deixou de chamá-lo de doença para não atrapalhar o PIB do esforço alheio. Curioso: a mesma lógica que vende produtividade em cápsulas vende também cápsulas para dormir.

 

Silvan : E a régua oficial? O Inep diz que conceito 5 significa “curso de referência”. Referência de quê? De quantas horas um corpo aguenta antes de falhar? A Resolução CFM 2077 até admite observação hospitalar de no máximo 24 h, mas não fala em maratona acadêmica sem água nem travesseiro.

 

Eu : Sem falar que já temos revisão integrativa mostrando taxas de burnout em estudantes de medicina brasileiros chegando a 17 %. Não falta bibliografia; falta oxigênio e falta senso.

 

Silvan : Foucault chamaria isso de disciplina; Han, de auto-exploração. Eu chamo de “café requentado servido como virtude”.

 

Eu : E a pandemia nem esfriou: médicos e enfermeiros de UTI ainda tratam trauma de plantão enquanto a próxima geração ensaia repetir o mesmo script, agora em versão “nota máxima”.

 

Silvan : Ironia fina: Han acaba de ganhar o Prêmio Princesa de Asturias por denunciar exatamente essa engrenagem que chamamos de excelência. Talvez devêssemos pendurar o troféu na porta do internato como lembrete de que o troféu não cura a exaustão.

 

Eu : E quando alguém reclama, surge a pedagogia da punição exemplar: partem para falsificar assinatura de dissidente — no mais puro espírito de “auto-gestão da submissão”. Aqui, até a lei de estágio vira massa de manobra: limite de 40 h semanais? Só na letra fria; no chão gelado vale “quanto couber na agenda”.

 

Silvan : Resultado: o estudante descobre cedo que o estetoscópio serve também como espelho retrovisor de sua própria fadiga. Afinal, todo mundo quer salvar vidas — inclusive a própria carreira acadêmica. Basta assinar embaixo.

 

Eu : Enquanto isso, a Comissão Nacional de Residências em Saúde coleciona denúncias de excesso de carga horária e acha normal pedir “resiliência”. Dizem que médico bom nasce da privação de sono. Pena que burnout mata antes de formar caráter.

 

Silvan : No fim, ficamos com a brilhante equação da Sociedade do Cansaço: conceito 5 + plantão 24 h = diploma brilhante + coração cansado. Quem vai escutar o esteto quando o barulho do cansaço virou ruído branco?

 

Eu : Pois é. Mas continue repetindo comigo o mantra institucional: “É só mais um plantãozinho, doutor.” Se der pane, toma um energético e não esquece de agradecer a nota 5 na porta. Afinal, excelência é só uma questão de marketing acadêmico.

 

Referências:

 

  • BYUNG-CHUL HAN. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

 

 

 

 

  • GASPAR DA SILVA, C. et al. Síndrome de Burnout em estudantes de medicina: revisão integrativa. Research, Society and Development, v. 13, n. 9, p. 1-12, 2024.

 

 

 

  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. ICD-11: Burn-out. Genebra: OMS, 2019.

 

 

 

  • BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação Geral de Residências em Saúde. Denúncia de excesso de carga horária em internato médico. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mec/.../cnrms.pdf. Acesso em: 18 jun. 2025.

 


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