Pensamento crítico, esse zumbi útil
Se eu escutasse mais uma vez a expressão “estimular o pensamento crítico” sem rir, talvez me tornasse um coach. Ou um analista de dados emocionais. Porque, vamos ser honestos: essa expressão já perdeu o pouco sentido que tinha. Ela aparece em todo canto – no discurso da escola, da empresa, do influencer educacional e, agora, no evangelho contemporâneo das inteligências artificiais.
Autor José Antônio Lucindo da Silva
#maispertodaignorancia
17/06/2025
Recentemente, li uma matéria da Fast Company Brasil com o seguinte título: “Ensinar a lidar com IA é necessário; estimular o pensamento crítico é fundamental”. De novo, a velha promessa de que, com um pouco de boa vontade, planilhas e metodologias ativas, formaremos cidadãos reflexivos que saberão “usar bem” a IA. Como se o problema fosse só de ferramenta e não de estrutura.
Mas vamos ao ponto: quem disse que já tínhamos pensamento crítico para estimular?
Como vou estimular algo que nunca saiu do PowerPoint da pedagogia empreendedora?
O que temos, na prática, é um simulacro de reflexão domesticado pela lógica do desempenho. O que é “crítico” hoje? Um post no LinkedIn dizendo que IA precisa de ética. Um vídeo de TikTok dizendo que nem tudo se resolve com ChatGPT. Pronto, já posso dar aula de filosofia tecnológica em qualquer pós-graduação da moda.
Só que o buraco é mais embaixo – ou, melhor dizendo, a ignorância é mais profunda.
A IA como espelho do nosso fracasso escolar
Não é a IA que está errada. Somos nós que não temos material humano preparado para lidar com ela. A IA só acelera o que já estava ali: a incapacidade de questionar, a fragilidade do argumento, a ilusão de que saber operar uma ferramenta é o mesmo que entender o mundo que ela transforma.
Como posso exigir pensamento crítico se o sujeito já foi treinado desde cedo a copiar, colar, decorar, repetir? A IA apenas formalizou esse processo. Ela não destrói o pensamento crítico – ela só o substitui por uma simulação com fluidez sintática.
Entre a crítica e o clique
E aí vem a ironia máxima: queremos ensinar “uso responsável da IA” para uma população que não sabe lidar nem com o botão “concordo com os termos de uso”. O analfabetismo digital não é sobre não saber usar o celular. É sobre não saber o que esse uso significa. É clicar sem saber o que se valida. É consumir sem saber o que se entrega. É aceitar tudo para continuar deslizando a vida para cima.
Pensamento crítico virou isso: um zumbi útil que enfeita slides corporativos e projetos de educação digital.
Então… ensinar o quê, exatamente?
Não adianta ensinar IA se o sujeito não sabe nem elaborar uma dúvida que não tenha sido respondida pelo Google. O que se vende como “formação crítica para o futuro” é, na verdade, adestramento funcional para manter o presente como ele é: ignorante, ansioso e produtivo.
Não se trata de ensinar a usar IA. Trata-se de reaprender a conviver com o silêncio, com o tempo, com o erro, com o outro – coisas que a IA, por mais generativa que seja, jamais poderá simular com verdade.
Mas, claro, isso não dá engajamento. Melhor dizer que estamos “formando para o futuro”, enquanto a gente continua repetindo slogans com um ar de sabedoria reciclada.
E pensar que tudo isso começou com a promessa de que tecnologia nos libertaria.
Pois é. Libertou. Inclusive do pensamento.
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#maispertodaignorancia
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