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O Caso Leo Lins





No Brasil de 2025, um humorista descobre — tarde demais — que o palco não é terra de ninguém. Leo Lins, condenado a oito anos e três meses de reclusão por violar o art. 20 da Lei 7 716/1989 (Lei do Racismo) e o art. 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), invocou a velha retórica da “persona cômica”. Entretanto, o Judiciário entendeu que, quando a gargalhada se faz arma para rebaixar grupos vulneráveis, a liberdade de expressão esbarra numa cláusula pétrea: a dignidade humana. A seguir, apresento — em primeira pessoa e com o ácido respeito que devo à ironia — um exame técnico-acadêmico da condenação, costurando Freud, Byung-Chul Han e companhia para mostrar que, às vezes, a máscara do bufão é apenas o rosto do cinismo.


1 • Fundamentos jurídicos da condenação

1.1 Tipificação penal

O art. 20 da Lei 7 716/1989 criminaliza “praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito” . Em 2023, seu § 2º foi agravado para prever reclusão de dois a cinco anos quando o ato ocorre em “meio de comunicação” ou “atividade artística destinada ao público” . Já o art. 88 do EPD pune a discriminação contra pessoa com deficiência com até três anos . Somadas as penas — acrescidas de continuidade delitiva e difusão digital — chegamos aos oito anos cravados pela 3ª Vara Federal de São Paulo .


1.2 Prova material

A decisão transcreve o show “Perturbador”, postado no YouTube, em que Lins dirige ofensas a negros, LGBTQIA+, indígenas, obesos e pessoas com HIV para uma plateia de mais de três milhões de espectadores . Arquivos de vídeo, hashes e laudos técnicos corroboram a autoria e a divulgação massiva. A juíza cita, de passagem, definição de stand-up retirada da Wikipédia — detalhe irrelevante perto do robusto conjunto probatório .

1.3 Precedentes
Desde o caso Ellwanger, o STF afirma que a liberdade de expressão cede diante da disseminação de ódio racial . Os tribunais brasileiros vêm aplicando a mesma lógica a influenciadores digitais que usam “personagens” para propagar discriminação.


2 • Persona cômica? Freud ri por último:

Freud já advertia em O chiste e sua relação com o inconsciente que a piada libera pulsões recalcadas, mas só é socialmente tolerável quando não degrada o outro . Ao investir no escárnio dirigido, Lins troca a catarse pelo sadismo de plateia. A desculpa do “foi o personagem, não eu” ignora que, no modelo freudiano, o Ich responde por aquilo que goza: quem goza do insulto assume o dolo da injúria.


3 • Byung-Chul Han e a transparência do cinismo

Han descreve a “sociedade da transparência” como um regime em que tudo se expõe — inclusive o ódio, polido como produto de entretenimento . Quando o conteúdo discriminatório se monetiza em cliques, vemos a “psicopolítica” transformar a ofensa em mercadoria: auto-exploração algorítmica do preconceito. O prêmio Princesa de Astúrias recém-concedido ao filósofo apenas reforça a atualidade de seu diagnóstico .


4 • Estudos empíricos: piadas que ferem:

Pesquisas em psicologia social mostram que humor racial em ambientes digitais aumenta a tolerância a agressões e reforça estereótipos ; mesmo quando o alvo não está presente, ouvintes minoritários registram estresse fisiológico . No Brasil, Adilson Moreira cunhou “racismo recreativo” para nomear esse riso que naturaliza hierarquias sob a capa da diversão . Estudos acadêmicos analisam como tal humor “normaliza” a intolerância entre adolescentes e educadores .


5 • Ironia final: o cabide e o abismo
Simon Critchley lembra que o humor expõe uma fissura entre o eu desejado e o eu real . 

No caso Leo Lins, a fissura escancarou um abismo entre riso e dignidade. O cabide exibido em live para provar que existe “figurino” não pendura a responsabilidade: só revela, em cores neutras, o figurino do cinismo. Minha liberdade cômica termina onde começa o humano que se recusa a virar punch-line; simples assim — e a lei, desta vez, riu por último.


Referências:


BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.


BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jan. 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 8 jun. 2025.


BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015. Disponível em:
 
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 8 jun. 2025.


CAMINO, L. et al. As novas formas de expressão do preconceito racial no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2004.


CRITCHLEY, Simon. On Humour. London: Routledge, 2002.


FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente. Obras completas, v. 7. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.


HAN, Byung-Chul. Entrevista: “Premio Princesa de Asturias”. Cadena SER, Madrid, 7 maio 2025. Disponível em: https://cadenaser.com/asturias/2025/05/07/el-filosofo-y-ensayista-byung-chul-han-premio. Acesso em: 8 jun. 2025.
LINS, Leo. Perturbador [vídeo]. YouTube, 2022. (Conteúdo utilizado como prova judicial).


MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.


“Humorista Leo Lins é condenado à prisão por discriminar minorias em show”. Consultor Jurídico, São Paulo, 3 jun. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jun-03/humorista-leo-lins-e-condenado. Acesso em: 8 jun. 2025.
“Léo Lins foi condenado por racismo e capacitismo; entenda a sentença”.
 

Estadão Verifica, São Paulo, 6 jun. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/leo-lins-lei. Acesso em: 8 jun. 2025.


“Ocho años de cárcel a un humorista en Brasil por chistes vejatorios”. El País, Madrid, 3 jun. 2025. Disponível em:
 
https://elpais.com/america/2025-06-03/ocho-anos. Acesso em: 8 jun. 2025.
SANTOS, L. O. Não é só piada: práticas discriminatórias no humor brasileiro.
 

2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Psicologia) — Universidade de Brasília, Brasília, 2016.


TAYLOR, J.; DOYLE, P. Race-Based Humor and Peer Group Dynamics in Adolescence. Journal of Youth and Adolescence, v. 45, n. 8, p. 1541-1554, 2016.


WILLIAMS, A. et al. Cracking Wise to Break the Ice: Racial Humor and Anxiety. Humor – International Journal of Humor Research, v. 32, n. 3, p. 341-362, 2019.


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