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INTERROGAR O INVISÍVEL: quando a pergunta vira peça de museu algorítmico



INTERROGAR O INVISÍVEL: quando a pergunta vira peça de museu algorítmico

Autor José Antônio Lucindo da Silva 
#maispertodaignorancia
18/06/2025

Diante de 5,9 milhões de buscas por minuto no Google — cada uma delas pretendendo “saber” algo que na maioria das vezes nem receberá clique — perguntar deixou de ser gesto epistemológico para virar efeito especial do feed . Eu, que ainda deposito minhas hesitações na velharia chamada “tensão psíquica”, insisto: perguntar dói, demora e, sobretudo, não rende KPI. Eis o problema que este artigo ironicamente trava: como sustentar a pergunta como trabalho material de si quando a indústria da resposta pré-paga já registra, monetiza e empacota até o meu suspiro?


1 · Introdução

De Sócrates restou o meme do “só sei que nada sei”; de nós, restou a pressa de saber antes mesmo de sentir a dúvida. A Folha, ao afirmar que perguntar é um ato de resistência em tempos de IA , escancara o paradoxo: transformamos a própria pergunta em expressão de guerra cultural. Aqui reflito, em primeira pessoa, sobre esse colapso performático e exponho dados que provam como a interrogação, outrora motor da filosofia, tornou-se item de fast-food cognitivo.


2 · Panorama empírico das “grandes perguntas” brasileiras


2.1 Perguntas populares em 2024

Top 10 “Como fazer” do Year in Search (Google Brasil) giram de “mochila maluca” a “título de eleitor online” ; Top 10 “Por que” incluem “Por que Wanessa Camargo saiu do BBB?” e “Por que o X foi banido do Brasil?” . A própria gravidade cede à curiosidade efêmera.


2.2 Volume e saturação

Google processa 70 mil buscas por segundo, cerca de 5,8 bilhões por dia , enquanto estima-se 6,3 milhões de pesquisas a cada minuto em 2025 . Apesar do tsunami informativo, 58 % dessas consultas terminam sem clique algum, sinal de que a pergunta já se satisfaz na prévia do resultado .


2.3 IA como respondedor-chefe

ChatGPT recebe 126 milhões de visitas diárias, normalizando o consumo instantâneo de “respostas” sob um teto de 40 perguntas por usuário a cada três horas .


3 · Discussão: a pergunta colonizada

Byung-Chul Han adverte que a transparência total converte o outro numa vitrine sem conflito; logo, a dúvida se dissolve no brilho da vitrine . A chamada “economia da intenção”, etapa evolutiva da velha economia da atenção, vai além: prediz a pergunta antes que eu a formule, vendendo-a em tempo real ao maior lance publicitário . Enquanto isso, 85 % das marcas brasileiras já contam Stories como pilar de estratégia, moldando o enunciado ao frame de 15 segundos .


Neste cenário, interrogar converte-se em performance higienizada. A Pesquisa TIC Domicílios mostra que apenas 9 % dos lares sem internet o fazem por “falta de interesse” ; o resto esbarra em custo ou infraestrutura. Ou seja: quem não pergunta online nem sequer conta como “sujeito cognoscente” no índice de mercado.

4 · Ironia metodológica: três exercícios de des-colonização

1. Maiêutica revertida — em vez de “o que é amor?” pergunto: “quem lucra se eu chamar isso de amor?” (Foucault assinaria) .


2. Epoché sem wi-fi — 48 horas off-line para descobrir se resta pergunta quando desaparece a notificação.


3. Cartografia da intenção — mapear cada dúvida até sua plataforma mediadora: TikTok, Google, ChatGPT; pontuar quem monetiza a rota.



5 · Considerações finais

Perguntar hoje é ato arqueológico: escavo silêncio num terreno onde o ruído se vende como verdade. A fluidez cancela a tensão antes da coagulação do pensamento. Persisto na pergunta porque, ao contrário do like, ela não me devolve de imediato; ela me arranha — e, ao arranhar, lembra-me que ainda tenho corpo.


"Se a dúvida incomoda o feed, tanto melhor: talvez seja sinal de que ainda não fui totalmente indexado."



Referências:

BION, Brandon. Media and transparency: an introduction to Byung-Chul Han in English. Los Angeles Review of Books, 2017. Disponível em: https://lareviewofbooks.org. Acesso em: 18 jun. 2025.

BRASIL. Comitê Gestor da Internet. Pesquisa TIC Domicílios 2024. São Paulo: CETIC.br, 2025. Disponível em: https://cetic.br. Acesso em: 18 jun. 2025.

FAST COMPANY BRASIL. Depois da economia da atenção, vem aí a economia da intenção. 12 fev. 2025. Disponível em: https://fastcompanybrasil.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

FOLHA DE S.PAULO. Em tempos de IA, perguntar é um ato de resistência. Papo de Responsa, 16 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 18 jun. 2025.

GOOGLE. Year in Search 2024 – Brasil. Mountain View, 2024. Disponível em: https://trends.withgoogle.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

O GLOBO. Google revela as 10 dúvidas mais populares dos brasileiros em 2024. 11 dez. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

SEO.COM. Factos e estatísticas sobre motores de pesquisa que é preciso saber em 2025. 20 mai. 2025. Disponível em: https://www.seo.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

SEM RUSH. 34 estatísticas de pesquisa do Google para 2024. 30 abr. 2025. Disponível em: https://pt.semrush.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

THREADS. O ChatGPT recebe 126 milhões de visitas por dia – e você ainda usa como iniciante? 02 mar. 2025. Disponível em: https://www.threads.com. Acesso em: 18 jun. 2025.

RD STATION. 95 estatísticas de redes sociais para conhecer em 2024. 03 nov. 2024. Disponível em: https://www.rdstation.com. Acesso em: 18 jun. 2025.


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