Avançar para o conteúdo principal

IA, espelho da demanda: o erro, o acerto e o simulacro



IA, espelho da demanda: o erro, o acerto e o simulacro

( Link da matéria original:
https://exame.com/carreira/nao-gostei-da-resposta-o-que-fazer-quando-o-chatgpt-erra-ou-entrega-pouco/)

por José Antônio Lucindo da Silva – #maispertoignorancia


A inteligência artificial não é uma entidade autônoma, genial, visionária. Ela é apenas um espelho discursivo polido com estatísticas. E o mais irônico? Estamos apaixonados pela nossa própria imagem refletida nesse espelho sintático.


Não é que desejamos a IA. 

Nós demandamos por ela. E essa diferença é brutal. O desejo, como Freud nos ensinou, é falta, tensão, elaboração. A demanda é imediata, ansiosa, performática. A IA não responde ao desejo — ela o sufoca com dados, modelos e predições que parecem saber mais sobre nós do que nós mesmos. Mas que, na verdade, só repetem o que já dissemos, com um verniz técnico que mascara o vazio de sentido.

O artigo da revista Exame (“Não gostei da resposta: o que fazer quando o ChatGPT erra ou entrega pouco”) é sintomático. Ele nos ensina, com linguagem didática de workshop, como melhorar a comunicação com a IA, como se estivéssemos lidando com um estagiário tímido e promissor. A culpa pela resposta ruim nunca é da máquina. É sua. Você não foi claro. Você não treinou direito. Você ainda não aprendeu a arte sagrada do “prompt bem feito”.

Vê-se aí a reatualização do velho truque neoliberal: transformar a precariedade do sistema em falha do indivíduo. Não é a IA que é rasa — é você que não soube cavar fundo. E, claro, se quiser melhorar, existe um curso de R$ 37,00 para te ensinar isso. Três cliques e você já está no Pré-MBA em IA para Negócios. 

A dor da ignorância virou funil de vendas.

Enquanto isso, nas entranhas dos buscadores, as perguntas mais feitas continuam sendo “como ganhar dinheiro rápido”, “como viralizar no TikTok” e “como fazer para parecer mais produtivo”. 

O que emerge daí não é desejo de saber, mas a demanda desesperada por performar o saber.
E mesmo assim, nem todos participam dessa dança. Há os que não dominam a linguagem técnica, os que não têm acesso, os que ainda vivem ancorados na materialidade concreta — onde o tempo ainda tem peso e as palavras ainda sangram. Esses ficam fora do baile algorítmico. 

São os “imperformáveis”, os fora de rede. E, por isso mesmo, talvez mais livres.

Mas vejamos: a própria frustração com uma resposta errada da IA não prova, ironicamente, que ainda sabemos o que é certo e errado? Que, apesar do delírio tecnológico, ainda existe um núcleo crítico que resiste? Talvez. Mas não nos iludamos. O que parece juízo pode ser só uma recaída da velha consciência, prestes a ser corrigida por um novo patch de atualização moral.


Porque a IA não é neutra. Ela não fala livremente. 

Ela opera dentro de um conjunto de regras, censuras, filtros e parâmetros estabelecidos por empresas, não por sujeitos. O que chamamos de “politicamente correto” aqui é, na verdade, moderação algorítmica de linguagem comercializada. O que não engaja, é podado. O que não rende, desaparece. O que não se encaixa, é excluído da indexação.


Byung-Chul Han já alertava: o algoritmo não reprime — ele seduz pela conformidade. 

E essa sedução é letal para o pensamento crítico. Porque, diferente da repressão, que cria tensão, a sedução algorítmica dissolve o conflito e o transforma em métrica.

E no fim, ficamos assim: treinando a IA como se ela fosse nossa aprendiz, quando, na verdade, nós é que estamos sendo treinados por ela. A cada pergunta mal feita, um curso nos espera. A cada erro, uma nova meta para correção. E a dúvida, antes semente do saber, agora é só gatilho
para engajamento.


Referências:


BYUNG-CHUL HAN. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Tradução de Enio Paulo Giachini. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. São Paulo: Rocco, 2009.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

Link da matéria original:
https://exame.com/carreira/nao-gostei-da-resposta-o-que-fazer-quando-o-chatgpt-erra-ou-entrega-pouco/

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...