“IA corrige redações, a rua corrige ilusões: notas perfeitas para um abismo em expansão”
Sumário em uma frase:
Ponho o dedo no gatilho algorítmico que dita produtividade, mas o tiro ricocheteia na rua sem teto, no cérebro saturado de notificação e no desespero civilizatório já descrito por Freud, Bauman e Byung-Chul Han — a Inteligência Artificial apenas faz soar mais alto a sirene que fingíamos não ouvir.
Introdução – um espelho que devolve fendas:
Escrevo como professor (não sou professor, e nem educador ), exausto, psicólogo intrigado e cidadão que tropeça em barracas azuis a caminho da escola. A coluna de Fernando Schüler, animada pelo estudo do MIT sobre “atrofia cognitiva” induzida pelo ChatGPT chamou minha atenção, mas a experiência diária diz que o buraco é maior: o músculo intelectual definha porque o tempo e o espaço de pensar já foram leiloados. Quando CEOs admitem substituir gente por código e start-ups vendem detectores para “caçar” textos sintéticos , fica claro que IA está virando tribunal de si mesma — e nós, réus ausentes.
1. Psicologia da aceleração: esquecer para poder sobreviver:
Um estudo da University of Toronto revela que o cérebro saudável “poda” memórias redundantes para liberar energia de reflexão .
Paradoxalmente, o Big Data da IA acumula cada byte, recusando o esquecimento funcional. Nesse choque, surge a angústia descrita por Freud: a técnica promete suprimir o desprazer, mas gera novo mal-estar quando exige vigilância ininterrupta (FREUD, 1930). A promessa de “copiloto” cognitivo transforma-se em dívida: o MIT comprovou menor ativação neural em usuários dependentes de LLMs após três sessões de escrita .
2. Filosofia da exaustão: sociedade paliativa e positividade letal
Byung-Chul Han chama o século XXI de “sociedade do cansaço”: suor sem confronto, like sem pausa . A cada redação corrigida pelo ChatGPT, afasto o conflito necessário à elaboração — aquilo que Han descreve como “paliativo”, analgésico que não cura. A corrida IA-versus-IA para detectar plágio algorítmico exemplifica a “violência da positividade”: confiamos na máquina para produzir e, em seguida, em outra máquina para desconfiar .
3. Sociologia da liquidez: onde pousar o livro?
Bauman recorda que relações e instituições derretem na velocidade do mercado (BAUMAN, 2001). Enquanto discutimos performance neural, 29 % dos brasileiros seguem analfabetos funcionais e 93 mil pessoas dormem ao relento em São Paulo . Falar em “leitura lenta de Dostoiévski” sem perguntar onde apoiar o livro é privilégio que escapa à materialidade.
4. Economia política da automação: suor invisível e desalento:
A McKinsey projeta que até 30 % das horas de trabalho nos EUA podem ser automatizadas até 2030, aceleradas pela IA generativa . Mas o “milagre” do ChatGPT se apoia em moderadores quenianos que ganham US$ 1,90/hora revisando violência gráfica . Assim, substituímos operários locais no Norte Global e terceirizamos trauma psíquico ao Sul Global — colonialismo digital revisto por Harari .
5. A crítica a Schüler: sombras sem chão
Schüler acerta ao temer a preguiça mental, mas falha ao ignorar:
1. Tempo docente — 20 % da jornada de correções não remuneradas força a adoção de IA como muleta.
2. Espaço precário — sem banda larga ou teto, não há “músculo” a exercitar.
3. Matéria tóxica — a rua, o desemprego algorítmico e o trabalho precário minam qualquer projeto de reflexão. Sua sombra é real, mas precisa de chão para se projetar.
Conclusão: entre a lona e o silício
A inteligência artificial não inventou a angústia; apenas amplificou a frequência com que ela ressoa. Se, como diz Freud, a civilização exige renúncia pulsional, hoje renunciamos até ao direito de demora. Enquanto isso, algoritmos disputam quem corrige quem — e nós aceitamos o laudo sem duvidar. Proponho reinstalar rituais de lentidão, tributar produtividade algorítmica e expor o custo humano escondido nos datasets. Caso contrário, continuaremos apagando provas, ruas e corpos em nome de um progresso jamais definido.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1930.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HARARI, Yuval Noah. Yuval Noah Harari on AI and Human Evolution. The Wall Street Journal, Nova York, 2025. Disponível em: https://www.wsj.com/video/events/yuval-noah-harari-on-ai-and-human-evolution-wsj-leadership-institute/3A6CED0A-8A4F-424C-9D26-E568D19F8847. Acesso em: 30 jun. 2025.
CHOW, Andrew R. ChatGPT May Be Eroding Critical Thinking Skills. TIME, 2025. Disponível em: https://time.com/7295195/ai-chatgpt-google-learning-school/. Acesso em: 30 jun. 2025.
MIT MEDIA LAB. Your Brain on ChatGPT: neural and behavioral consequences of LLM-assisted writing. Cambridge, 2025. Disponível em: https://www.media.mit.edu/publications/your-brain-on-chatgpt/. Acesso em: 30 jun. 2025.
CORREIO BRAZILIENSE. Analfabetismo funcional no Brasil permanece em 29%. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/2025/05/7133034. Acesso em: 30 jun. 2025.
AGÊNCIA BRASIL. População de rua cresce 31% em dois anos, mostra censo. São Paulo, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br. Acesso em: 30 jun. 2025.
MCKINSEY & Company. Generative AI and the future of work in America. Nova York, 2023. Disponível em: https://www.mckinsey.com/mgi/our-research/generative-ai. Acesso em: 30 jun. 2025.
VEJA. SCHÜLER, Fernando. As sombras da IA. São Paulo, 27 jun. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/as-sombras-da-ia/. Acesso em: 30 jun. 2025.
TIME. ChatGPT’s hidden labor. Londres, 2025. Disponível em: https://time.com/7284336/chatgpt-hidden-labor/. Acesso em: 30 jun. 2025.
José Antônio Lucindo da Silva, CRP 06/172551. Psicólogo clínico, pesquisador independente no Blog “Mais Perto da Ignorância”.
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