Em poucas páginas, descubro que o Supremo quer costurar toga para algoritmo, que o mercado festeja CPM vitaminado, e que a tal “defesa da liberdade” parece ter sido escrita por quem nunca precisou rotear 4 G pré-pago na fila do SUS. A decisão do STF de furar o air-bag do Art. 19 pode até trazer algum alívio às vítimas de discurso de ódio — mas ao preço de empurrar pequenos criadores para fora do feed, concentrar ainda mais receita em Google-Meta & Cia. e inaugurar um “superego em nuvem” que cobra IOF moral por palavra digitada.
Introdução
Eu, o polegar e a toga
Acordo, deslizo o polegar e noto que, desde ontem, cada gesto meu já vem com etiqueta de responsabilidade civil embutida. Seis ministros do STF formaram maioria para reinterpretar o Art. 19 do Marco Civil e tornar as plataformas co-responsáveis pelo conteúdo antes mesmo de ordem judicial(gazetadopovo.com.br). Há quem comemore a faxina; eu, cético confesso, vejo Freud reaparecer em forma de IA: recalque automático, empacotado em micro-segundos de compliance.
Superego em nuvem – quando o feed vira divã
O Supremo não legisla no vácuo: Musk ignorou ordem de bloqueio, a CPI das milícias digitais pressiona, e Moraes brada que “não será intimidado” (cbn.globo.com). O resultado é um pré-crime moderado por máquinas. Estudo do Reglab projeta até 754 mil novas ações cíveis em cinco anos, drenando R$ 777 milhões do Judiciário(jota.info, static.poder360.com.br). Enquanto isso, o mercado global de moderação já girou US$ 9,67 bi em 2023 e cresce 13 % ao ano — higiene do feed rende mais que vender sabonete(grandviewresearch.com).
Se o desejo freudiano exigia tensão, o algoritmo-bedel serve dopamina condicionada: delete antes que goze. Byung-Chul Han chamaria isso de transparência compulsiva; Lasch, de narcisismo em versão ISO-9001.
Compliance couture – quilos de IA, CPM turbinado
No Brasil, a publicidade digital já vale R$ 37,9 bi (alta de 8 % em 2024) e disputa cada pixel “brand-safe” com unhas e filtros(economia.uol.com.br). Menos inventário “seguro” significa CPM mais caro; quem paga? O pequeno e-commerce, não a multinacional dolarizada. A plataforma, por sua vez, contrata exércitos de moderadores ou — mais barato — terceiriza trauma a uma rede neural que confunde ironia com crime. Relato clássico da EFF sobre o PL 2630 alerta: exigir rastreabilidade e remoção prévia empurra o erro para o usuário e fragiliza direitos humanos(eff.org).
Vácuo socioeconômico – a liberdade que cabe no bolso
Somos 187,9 milhões de internautas, 86,6 % da população; o que parece inclusão plena ainda deixa 29 milhões off-line, fora do “debate sobre liberdade”(datareportal.com). Quem decide por eles? Um Congresso em que 60 % dos deputados se declaram homens brancos de patrimônio milionário(poder360.com.br, nexojornal.com.br). Não espanta o foco no “risco à inovação” enquanto o vendedor de bolo no Instagram treme diante de multa por meme.
Minha ironia amarga: a China ergueu firewall e criou Alibabas; nós ensaiamos firewall “tupiniquim” sem política industrial — só herdamos o controle.
Conclusão – entre o absurdo e a fatura
Ernst Becker dizia que negamos a morte; nós negamos o cache. Ao acreditar que deletar resolve, transformamos o discurso em item perecível, vendido a CPM premium, enquanto o real — desmatamento, fila do transplante, bala perdida — continua offline. Se a promessa era liberdade, entregamos um feed esterilizado onde o único escândalo aceitável é o preço do anúncio. Eu sigo digitando, ciente de que cada vírgula pode custar caro, mas confortado por um último luxo: a ironia ainda não entrou na tabela de valores do marketplace de virtudes.
Resumo
Este ensaio, em primeira pessoa, analisa criticamente a decisão do STF que amplia a responsabilidade das plataformas digitais, examinando seus impactos socioeconômicos, psicológicos e mercadológicos. Argumenta-se que a medida, embora busque conter danos como fake news, tende a concentrar mercado, elevar custos publicitários e reforçar um “superego algorítmico” que recalca vozes dissidentes. Referências cruzam dados empíricos recentes e autores como Freud, Lasch e Byung-Chul Han para mostrar a tensão entre liberdade e compliance.
Palavras-chave: Marco Civil da Internet; responsabilidade civil; moderação de conteúdo; narcisismo digital; superego algorítmico.
Referências:
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
ELECTRONIC FRONTIER FOUNDATION. FAQ: Por que o Projeto de Lei Brasileiro de Tornar Obrigatória a Rastreabilidade.... 2020. Disponível em: https://www.eff.org/. Acesso em: 12 jun. 2025.
GAZETA DO POVO. STF forma maioria para reinterpretar Art. 19 do Marco Civil. 2025. https://www.gazetadopovo.com.br/.
GRAND VIEW RESEARCH. Content Moderation Services Market Size Report, 2030. 2024.
https://www.grandviewresearch.com/.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2017.
JOTA.INFO. Mudança no Marco Civil pode gerar 750 mil ações até 2029, aponta Reglab. 2025. https://www.jota.info/.
PODER360. O preço da moderação. PDF. 2025.
PROPAGANDA E MARKETING (Propmark). Publicidade na internet movimenta R$ 37,9 bi em 2024. 2025.
UOL Economia. Publicidade digital no Brasil chega a R$ 37,9 bi. 2025.
DATAREPORTAL. Digital 2024: Brazil.
2024. https://datareportal.com/.
CORREIO BRAZILIENSE. Congresso é um espelho distorcido da sociedade. 2023.
CBN. Milícias digitais não intimidarão o STF, diz Moraes. 2025.
STF. Com voto de Dino, julgamento sobre Marco Civil prossegue. 2025.
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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