Espelho fosco, sublimação falha: por que a literatura algorítmica
não nos redime
Por José Antônio Lucindo da Silva – #maispertodaignorancia
24/06/2025
Introdução
“Em 2025, escrever ignorando a inteligência artificial é antirrealismo”,
proclama Jorge Carrión em entrevista recente à Veja . Tomo a frase
como ponto de partida – e de atrito. Se escrever com IA é
inevitável, isso não a transforma, por milagre, num novo Gênesis literário.
Continuamos presos ao mesmo teclado, apenas com um espelho estatístico mais
reluzente na frente dos olhos.
1 O espelho fosco
da IA
Carrión vende a máquina como parceira criativa; eu a vejo como DJ de
restos: empilha “cadáveres linguísticos” a partir de distribuições de
probabilidade. Los campos electromagnéticos – livro que o próprio
autor coproduziu com GPT-2 e GPT-3 – deixa isso claro: quanto mais “original” o
output, mais perceptível a colagem. Liquidez reciclada, diria Bauman; tudo já
nasce usado antes do cursor piscar.
2 Likes como
entropia do eu
Na economia psicoafetiva descrita por Byung-Chul Han, o eu-empreendedor
se autoexplora à caça de confirmações microscópicas. Cada curtida é micro-dose
de dopamina que esvazia qualquer tensão pulsional – condição mínima da
sublimação freudiana. O texto gerado por IA apenas derrama mais conteúdo nesse
lago saturado, acelerando o esgotamento que Fédida chamou de “depressividade
sem tempo”.
3 Curto-circuito da
sublimação digital
Freud entendia a arte como desvio civilizatório que canaliza a pulsão. Mas o
algoritmo devolve exatamente o que desejo ver; não há fricção simbólica, logo
não há elaboração. A máquina substitui o Grande Outro por um espelho polido.
Resultado: eco que amplifica o vazio, não o transmuta.
4 Distopia repetida
em 4 K
Carrión se gaba de ter previsto drones autônomos; o espelho chegou primeiro.
Reportagens revelam que o sistema israelense Lavender listou
37 000 alvos humanos em Gaza via IA, terceirizando a seleção da morte . A
literatura “profética” apenas atrasou o release - note o paradoxo: denunciamos
o monstro quando ele já tem CPF fiscal.
5 A pureza como
logomarca
Enquanto o mercado ergue selos “Human Authored” e o governo
espanhol exclui obras geradas por IA de suas bolsas culturais , vendemos
autenticidade como se fosse “glúten-free”. A crítica vira commodity: pendura-se
um rótulo de pureza no mesmo cabide onde antes balançava o mito da “mente
original”.
6 Brecha hacker (ou
o caco no espelho)
Não há retorno ao pré-algoritmo, tampouco pureza literária longe das
plataformas. A saída crítica, sugiro, é assumir o lugar de hacker/DJ:
cortar, remixar, exibir as costuras. Se o desespero já virou KPI, transformemos
o espelho em caco: que o leitor se fira levemente antes de apertar “curtir”.
Conclusão
A literatura algorítmica não inventará um “Novo Fantástico”; recapitulará o
surreal que já dorme nas gavetas. O desafio é mostrar as
emendas – não escondê-las. Porque, se a IA é apenas um espelho, ele ficará mais
útil quando quebrado. Nas lascas, talvez ressurja a tensão que Freud exigia
para a arte e que o botão de like anestesia ainda no berço.
#maispertodaignorancia
Referências:
AUTORS GUILD. Human Authored – Portal de certificação para obras
humanas. 30 jan. 2025. Disponível em: https://www.authorsguild.org/.
Acesso em: 24 jun. 2025.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CARRIÓN, Jorge. Membrana. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2021.
CARRIÓN, Jorge; TALLER ESTAMPA. Los campos electromagnéticos: teorías y
prácticas de la escritura artificial. Buenos Aires: Caja Negra, 2023.
FÉDIDA, Pierre. L'état dépressif. Paris: PUF, 1992.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 2. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
SPONCHIATO, Diogo. “Em 2025, escrever ignorando a inteligência artificial é
antirrealismo”. Veja, São Paulo, 23 jun. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/em-2025-escrever-ignorando-a-inteligencia-artificial-e-antirrealismo/.
Acesso em: 24 jun. 2025.
“The machine did it coldly: Israel used AI to identify 37 000 Hamas
targets”. The Guardian, Londres, 3 abr. 2024. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2024/apr/03/israel-gaza-ai-database-hamas-airstrikes.
Acesso em: 24 jun. 2025.
URTASUN, Ernest. “Ajuda estatal ao quadrinho exclui IA generativa”. El
País, Madri, 13 mai. 2025. Disponível em: https://elpais.com/cultura/2025-05-13/.
Acesso em: 24 jun. 2025.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
Comentários
Enviar um comentário