Avançar para o conteúdo principal

Entre Sombras, Lonas e Silício: por que a Inteligência Artificial não explica o buraco no asfalto

 Entre Sombras, Lonas e Silício: por que a Inteligência Artificial não explica o buraco no asfalto





Entre Sombras, Lonas e Silício: por que a Inteligência Artificial não explica o buraco no asfalto

Resumo: Corrijo provas com IA enquanto a cidade coleciona barracas azuis e o governo recomenda passaporte para quem sonha com ciência. Este artigo cruza Freud, Bauman, Byung‑Chul Han, Cioran e Anderson Röhe para mostrar que o debate sobre “atrofia cognitiva” ignora o peso bruto do tempo, do espaço e do concreto. Quando um chatbot promete empatia sob trabalho terceirizado a US$ 2/hora, a única coisa realmente generativa é a precariedade.

1. O tempo que evapora


1.1 Provas em modo turbo

Leio Fernando Schüler na VEJA: IA deixaria o cérebro preguiçoso. Ele cita o estudo do MIT que comparou ChatGPT, Google e “cabeça pura”. O grupo IA pensou menos. Concordo, mas pergunto: quando o docente teria tempo de pensar se corrige 120 redações extra‑classe e não recebe hora extra (PONTOTEL, 2024)? A IA vira muleta, não por preguiça, mas por falta de relógio.

1.2 Paper e três eletrodos

Agência Brasil resume o experimento: 54 voluntários, quatro meses, declínio linguístico nos usuários de IA (AGÊNCIA BRASIL, 28 jun 2025). Boa metodologia; péssima alergia à materialidade. O cérebro é músculo — mas academia sem piso desaba.


2. Espaço derretido

2.1 Propósito que falha e herói de PPT

Valor Econômico denuncia o “fracasso do propósito” corporativo — heróis de LinkedIn salvam o mundo com hashtags enquanto terceirizam faxina moral (SCHÜLER, 2025). Propósito sem chão é slogan.

2.2 Fuga acadêmica

A Capes desaconselha EUA; dólar hostil, vistos limitados, bolsas minguadas (AGÊNCIA BRASIL, 27 jun 2025). Se nem ciência tem teto, imagina a aula de Dostoiévski.

2.3 Currículo no modo avião

Colégios redesenham currículo para “espaços híbridos” (TERRA, 26 jun 2025). Ótimo—desde que a fibra ótica chegue além da marginal.

3. Afeto em lata

3.1 Loja que finge escutar

E‑commerce promete IA que “escuta, aprende e age” (E‑COMMERCE BRASIL, 27 jun 2025). Tradução: mais dados, menos intervalo.

3.2 Confidente 24/7

Anthropic diz que 2,9 % dos diálogos com Claude são afetivos; <0,1 % românticos. Parece pouco até lembrar que nenhum psicólogo atende 1 milhão de pessoas por segundo.

3.3 País que pergunta ao robô

Pesquisa PiniOn mostra 67 % dos brasileiros conversando com bot sem perceber (MEIO & MENSAGEM, jun 2025). Metade teme perder emprego; o resto teme ficar sem resposta.

4. Suor terceirizado no paraíso da IA

Karen Hao lembra: moderadores quenianos ganham menos de US$ 2/h para filtrar violência e pornografia do ChatGPT (BBC NEWS BRASIL, 2024). A IA não pensa; ela consome córneas humanas.


5. Sombras de Schüler revisadas

  1. Tempo & espaço — ele alerta para atrofia cognitiva, mas ignora que o professor não tem hora nem banda larga.
  2. Dependência emocional — Anderson Röhe avisa: antropomorfismo cria laço 24/7 sem reciprocidade.
  3. Trabalho invisível — sem citar a fila de clickworkers, o colunista romantiza a leitura lenta num mundo que lê recibo de gás.

6. Conclusão em aberto

Se a vida vivida ficou atrás, o presente sem pausa é apenas feed. A IA não mente — ela preenche silêncio estatístico. O perigo não é a máquina pensar por nós, mas não termos onde pensar sem ela. Entre a lousa rachada e o servidor refrigerado, escolho escrever rápido… para que sobre tempo de ler devagar.

Referências:

AGÊNCIA BRASIL. Estudo do MIT aponta declínio cognitivo em usuários de ChatGPT. 28 jun. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

AGÊNCIA BRASIL. Estudantes devem buscar alternativa aos EUA, diz presidente da Capes. 27 jun. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

BBC NEWS BRASIL. O desgastante trabalho humano por trás do ChatGPT. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/. Acesso em: 30 jun. 2025.

E‑COMMERCE BRASIL. IA que escuta, aprende e age. 27 jun. 2025. Disponível em: https://www.ecommercebrasil.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

MEIO & MENSAGEM. Um em cada três brasileiros usa IA todos os dias. jun. 2025. Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

PONTOTEL. Jornada de trabalho de professor: o que diz a lei. 2024. Disponível em: https://pontotel.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

SCHÜLER, Fernando. As sombras da IA. VEJA, 27 jun. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

TERRA. Por que currículos devem habilitar o estudante a transitar em diferentes espaços. 26 jun. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/. Acesso em: 30 jun. 2025.

VALOR ECONÔMICO. O fracasso do propósito e a ilusão do herói. 25 jun. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/. Acesso em: 30 jun. 2025.

VEJA. Número de moradores de rua chega a 93 mil em SP. 28 jan. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/. Acesso em: 30 jun. 2025.

Autor
José Antônio Lucindo da Silva, CRP 06/172551. Psicólogo clínico, pesquisador independente no Blog “Mais Perto da Ignorância”.

#maispertodaignorancia

 


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...