Entre pedras, algoritmos e espelhos rachados: o amor como responsabilidade sem sentido
LEAD
O amor nunca esteve no outro. Essa é a tragédia — e talvez a última ética possível. O que chamamos de relacionamento virou funcionalidade algorítmica, e o desejo, um projeto logístico. Mas e se amar fosse, como sugeriu Diotima, uma forma de suportar a falta? E se o eu soberano fosse apenas um ruído narcísico que ecoa no vazio do outro?
O amor que não se completa: Diotima e o desejo sem retorno
Platão nunca deu voz direta a Diotima.
Ela não aparece no Banquete, só é evocada por Sócrates — e é justamente por isso que sua presença é tão poderosa. Ela não é corpo, é ausência. Não é argumento, é travessia. E o que ela ensina a Sócrates é simples e letal: o amor não é plenitude, é falta organizada. Desejamos aquilo que nos escapa. O amor é daimon, não é deus nem mortal. Ele é ponte — e como toda ponte, treme.
Mas hoje não queremos pontes, queremos entregas.
Preferimos algoritmos que nos tragam alguém “do mesmo nível”, “sem filhos”, “que goste de viajar”. A pedagogia de Diotima foi substituída pelo filtro do aplicativo. Não se sobe mais a escada do Belo — desliza-se o dedo.
O eu soberano e a abolição da responsabilidade afetiva
Roudinesco (2020) foi precisa ao identificar o surgimento de um “eu soberano” na contemporaneidade: um sujeito que se diz livre, mas é prisioneiro da própria idealização. Ele exige amor, respeito, pertencimento — mas não suporta o espelho da diferença.
Esse eu exige que o outro “ame-o como ele é” — sem perceber que o que ele é já está colonizado por discursos, algoritmos, identidades performáticas.
E mais: ele exige que o outro funcione, sem se perguntar o que sente em relação ao desejo que o habita.
É esse apagamento do outro como diferença que permite transformar o relacionamento em projeto: alguém a ser conquistado, encaixado, mensurado.
A ética de amar as pedras:
contrariedade como responsabilidade
Há um provérbio antigo que diz: “Para aprender a amar, ame as pedras.” Isso não significa fetichizar o inanimado — mas perceber que o amor não está na pedra, mas em quem ama. E isso muda tudo.
Se amo algo que não me responde, não posso mais responsabilizar o outro pelo que sinto. O amor se torna então um gesto ético, e não um contrato funcional.
Freud (1930) já nos dizia que a civilização é construída sobre o recalque de três tensões: a natureza, a morte e o outro. Amar uma pedra é reencontrar essas três, todas juntas: amar algo que não responde, não consola, não muda. E, mesmo assim, persistir.
Essa é a ética que se perdeu. Hoje, exige-se reciprocidade instantânea. E quando ela falha, não há elaboração — apenas substituição.
Tecnologia e o desaparecimento da tensão
Não é contra a tecnologia que se escreve — ela só amplia o que somos. Mas devemos reconhecer: o discurso do amor foi capturado por uma lógica de desempenho e otimização.
Os algoritmos não confrontam o desejo, eles o alimentam com o previsível. Não há tensão, não há tempo de espera, não há fracasso. Tudo vira fluxo.
Mas o desejo só se torna humano quando enfrenta a contrariedade. Amar exige escuta, silêncio, frustração. E nenhuma IA pode viver isso por nós.
Conhece-te — e saiba que és mortal
No templo de Delfos, lia-se: “Conhece-te a ti mesmo.” Mas a frase completa era: “Conhece-te a ti mesmo — e sabe que és mortal.”
Cioran (2021) reatualiza isso com sua brutal lucidez: não há sentido. E talvez só possamos amar eticamente quando paramos de exigir sentido do amor.
Porque o outro não está aqui para me completar. Nem para me curar. Ele está aqui para me confrontar com o fato de que sou só um corpo que sente, deseja e morre.
E se, mesmo assim, eu conseguir amar — então talvez eu tenha encontrado, entre ruínas e espelhos rachados, um caminho possível.
CONCLUSÃO ABERTA
Não há coaching que suporte esse amor.
Não há autoajuda que nos prepare para amar o que nos contraria.
E não há sentido a ser encontrado — apenas a coragem de continuar amando, mesmo quando tudo em nós grita por desistência.
Talvez amar seja só isso: assumir a responsabilidade por um sentimento que nasceu em mim, e não exigir que o outro o salve.
Ou, como diriam as pedras: silêncio.
REFERÊNCIAS:
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Trad. José Thomaz Brum. São Paulo: Rocco, 2021.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.
ROUDINESCO, Elisabeth. Eu, o superego e os outros. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Zahar, 2020.
#maispertodaignorancia
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