ENTRE O DOCE DE LEITE E O ALGORITMO: A LITURGIA DO CENTAVO NO SACRÁRIO DO FEED
Autor José Antônio Lucindo da Silva
#maispertodaignorancia
19/06/2025
(Artigo reflexivo-argumentativo, em primeira pessoa, irônico e sem pretensão de produzir verdades; apenas a fricção entre discurso e materialidade exigida pelo Projeto Mais Perto da Ignorância. Todos os nomes próprios foram suprimidos: “padre 1”, “padre 2” e “pessoa 3”.)
1 · PROSCÊNIO ─ O POTE QUE VAZOU PARA O COSMOS
Releio minha própria crônica — “Doce de leite & fel de algoritmo” — e percebo que jamais reclamei de cinquenta centavos: reclamei do hiato entre rótulo e realidade. Quando apertei “publicar”, a colher virou lança; o algoritmo, púlpito; e um doce artesanal tornou-se teoria geral do ressentimento on-line. A etiqueta dizia “x”; o caixa cobrava “x+ϵ”. Racional como o homo economicus, capturei a prova, postei, esperei o milagre dos retweets.
Resultado material: o PROCON confirmou meu direito. Resultado discursivo: o feed canonizou meu surto em tempo real. Consequência humana: “pessoa 3” — gerente da cafeteria — perdeu o emprego antes de terminar o turno.
2 · ATO I ─ PADRE 2, DUAS TÚNICAS, UM ALGORITMO
Chamemos o indignado de “padre 2”. Fora do altar, consumidor zeloso; dentro, pregador do perdão ilimitado. Dostoievski, se vivesse na era do 5G, diria: “Se Deus não tuíta, tudo é permitido”. O problema é que o feed premia a ira justa, não a misericórdia entediante. O próprio Catecismo — aquele livro grosso que ninguém escaneia — adverte contra o “escândalo”. Mas o escândalo, hoje, paga o aluguel da visibilidade.
Ao postar a indignação, padre 2 abdicou do gesto litúrgico para abraçar o gesto performático. Instantaneamente deixou de ser sacerdote e tornou-se case de marketing de consumo consciente. Eu rio (com um certo azedume freudiano): o superego bateu no balcão, mas foi o id que apertou “enviar”.
3 · ATO II ─ O SILÊNCIO DE PADRE 1
Surge, em flashback, “padre 1”. Em 2019, levara um empurrão de palco; reagiu com um “eu te perdôo” e enterrou a pauta antes que a tag subisse. Mesma fé, retórica inversa: onde um cala o algoritmo, o outro o cutuca. Byung-Chul Han explica: a sociedade da transparência celebra quem expõe tudo; a do cansaço, quem engole em seco. Escolha sua penitência: invisibilidade ou overdose de likes?
4 · ATO III ─ PESSOA 3 E A MAIS-VALIA DO LIKE
Marx cochicha na contracena: “A força de trabalho de pessoa 3 foi alienada duas vezes — primeiro ao patrão, depois ao trending topic.” Meu print gerou valor simbólico, mas a demissão dele gerou “redução de custo”. A infraestrutura venceu de goleada: a cafeteria trocou um funcionário caro por reputação no LinkedIn de sustentabilidade corporativa.
Aqui, acende-se o paradoxo: reclamei de R$ 0,50 pelo prisma do consumidor ilustrado; mas o preço real foi a folha de pagamento de alguém cujo nome nem viralizou. Não era o doce que importava — era o fetiche do “cliente vencedor”, esse simulacro de luta de classes que cabe num stories de quinze segundos.
5 · ATO IV ─ FREUD, LACAN, CIORAN NO DRIVE-THRU
Freud: o mal-estar da civilização é atualizado via Wi-Fi; o superego religioso veste a sobrepeliz do fiscal de rótulos, enquanto o id lambe o doce.
Lacan: o desejo do Outro foi satisfeito — o Grande Outro algorítmico que só pergunta: “Quantas impressões este pecado gera?”
Cioran: aconselha-me a desconfiar de qualquer indignação que não termine em silêncio; a minha terminou em trend. Logo, sou réu do próprio vazio.
A tríade revela que minha ira gourmet é menos sobre justiça e mais sobre gozo de imagem; menos sobre finitude e mais sobre permanecer, nem que seja no histórico do Google.
6 · ATO V ─ A ECONOMIA POLÍTICA DA MISERICÓRDIA
Homo sacer ou homo consumer? Padre 2 tenta manter ambas as cidadanias, mas o Código de Defesa do Consumidor não compartilha fronteira com o Sermão da Montanha: um garante reembolso, o outro exige a outra face. Quando invoquei César, sacrifiquei a estética do perdão.
E não, não falo de “verdade” nem “mentira”. Falo de sistemas de equivalência: centavos, curtidas, indulgências. Cada qual com sua moeda. No meu gesto, todas colidiram — e o algoritmo, árbitro silencioso, premiou quem rendeu maior CTR.
7 · CONTRA-CENA FINAL ─ PÍXEL POR PÍXEL, CENTAVO POR CENTAVO
Sentenço a mim mesmo: “Felizes os que não figuram no feed, porque deles é o sossego do anonimato.” Repetirei até decorar, embora duvide de conseguir ficar fora do palco. Padre 1 permanece como fantasma de serenidade; padre 2, como case de customer experience; pessoa 3, como lembrete de que o objeto real sempre paga a conta do espetáculo simbólico.
E eu? Eu sigo mastigando o doce de leite, agora com sabor de fel e aftertaste de Marx. Não busco absolvição, apenas a tensão que mantém vivo o desejo de perguntar: quanto custa a misericórdia quando o escambo é mediado por algoritmos?
#maispertodaignorancia
REFERÊNCIAS:
CORREIO BRAZILIENSE. Padre é denunciado ao Vaticano após confusão em cafeteria. Brasília, 17 jun. 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2025/06/7177455-padre-fabio-de-melo-e-denunciado-ao-vaticano-apos-confusao-em-cafeteria.html. Acesso em: 19 jun. 2025.
DIARINHO. Ex-gerente processa sacerdote e cafeteria após polêmica em Joinville. Itajaí, 10 jun. 2025. Disponível em: https://diarinho.net/materia/662426. Acesso em: 19 jun. 2025.
JORNAL RAZÃO. Gerente demitido move ação judicial contra cafeteria e sacerdote. Joinville, 17 jun. 2025. Disponível em: https://jornalrazao.com/geral/padre-denunciado-vaticano-ex-gerente-processa-havanna/. Acesso em: 19 jun. 2025.
PROCON-SC. Nota técnica sobre divergência de preços em Joinville. Florianópolis, 13 jun. 2025. Disponível em: https://www.procon.sc.gov.br/confusao-em-loja-de-joinville-padre-tinha-razao/. Acesso em: 19 jun. 2025.
OPAVO. Sacerdote anuncia afastamento das redes após crise de pânico. Fortaleza, 13 ago. 2019. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2019/08/13/apos-deixar-twitter-sacerdote-diz-que-vai-parar-de-fazer-show.html. Acesso em: 19 jun. 2025.
VEJA. Sacerdote perdoa mulher que o empurrou durante celebração. São Paulo, 15 jul. 2019. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/sacerdote-diz-ter-perdoado-agressora-de-palco/. Acesso em: 19 jun. 2025.
SILVA, José A. L. da. Doce de leite & fel de algoritmo: autobiografia apócrifa de um indignado em alta definição. Blog Mais Perto da Ignorância, 24 maio 2025. Disponível em: http://maispertodaignorancia.blogspot.com/2025/05/doce-de-leite-fel-de-algoritmo.html. Acesso em: 19 jun. 2025.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BYUNG-CHUL HAN. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2011.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
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