ENTRE O CHATGPT E O BOLETO: UM RETRATO IRÔNICO DO ANALFABETISMO FUNCIONAL E DIGITAL NO BRASIL HIPER-ALGORITMIZADO
ENTRE O CHATGPT E O BOLETO: UM RETRATO IRÔNICO DO ANALFABETISMO FUNCIONAL E DIGITAL NO BRASIL HIPER-ALGORITMIZADO
José Antônio Lucindo da Silva – #maispertoignorancia
Resumo
Embora 53 % dos trabalhadores brasileiros já acionem agentes de IA no expediente, quase um terço mal domina operações básicas de cópia-e-cola e 29 % permanece no limbo do analfabetismo funcional. O presente artigo examina, em chave irônica e crítico-reflexiva, o descompasso entre a retórica da “Nação 4.0” e a realidade de uma força de trabalho que terceiriza ao algoritmo aquilo que não aprendeu a fazer com lápis e papel. A partir de dados recentes de INAF, IBGE, Anatel, CETIC.br e Michael Page, articula-se um diagnóstico psico-sócio-tecnológico que expõe a conversão do sujeito em operador de prompt e questiona o fetiche nacional pela inovação sem alfabetização.
Palavras-chave: alfabetismo funcional; habilidades digitais; inteligência artificial; Brasil; crítica cultural.
1 | Introdução
O Brasil celebra, em post patrocinado, a façanha de integrar IA generativa no RH enquanto 25 % dos profissionais admitem que a empresa “não os prepara” para usá-la . Boa parte dos que “se viram” com ChatGPT sequer domina plenamente o idioma em que digita: o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) mostra que 29 % dos brasileiros de 15-64 anos continuam nos níveis “analfabeto” ou “rudimentar”, patamar idêntico a 2018 . Some-se a isso o dado do Censo 2022, que entrega ainda 7 % de analfabetismo absoluto .
Ao mesmo tempo, estudo da Anatel revela que só 4,2 % da população detém habilidades digitais avançadas (ler: programar) e que nem o básico ultrapassa a casa dos 30 % . Em suma, há mais gente declarando uso de IA (53 %) do que gente capaz de inserir uma fórmula em planilha (19 %) .
2 | A alfabetização que não aconteceu
2.1 Analfabetismo funcional crônico
Desde a virada do milênio, o INAF alerta que quase um terço do país lê o rótulo, mas tropeça no contrato de trabalho. O relatório 2024 ratifica a paralisia: três em cada dez continuam prisioneiros de textos curtos e cálculos elementares . As políticas de letramento estagnam, a meritocracia digital faz dancinha no TikTok.
2.2 A ilusão do “todo mundo online”
O IBGE festeja 87,2 % de usuários de Internet em 2022, mas aponta que o principal motivo para a não conexão é “não saber usar” (47,7 %) . Conectar-se, portanto, não equivale a operar criticamente o meio, muito menos a produzir conhecimento.
3 | Alfabetismo digital: clique, deslize, reze
Tabela 1 — Distribuição de habilidades digitais no Brasil (2023)
| Nível | % da população | Exemplo típico |
| --- | --- | --- |
| Básica | 29,9 % | Anexar arquivo ao e-mail |
| Intermediária | 17,9 % | Inserir fórmula em Excel |
| Avançada | 4,2 % | Programar aplicativo |
Fonte: Anatel (2024)
Relatório TIC Domicílios 2024 confirma o abismo: apenas 19 % declaram saber usar fórmulas em planilha e 17 % criar apresentações . Ainda assim, o evangelho corporativo exige “fluência em IA” nas vagas de estágio.
4 | IA no ambiente de trabalho: o sintoma sob a máscara
4.1 O paradoxo da proficiência autodeclarada
Segundo o Talent Trends 2025, 53 % dos brasileiros já utilizam IA no trabalho, mas 35 % se sentem “pouco preparados” e 25 % dizem que a empresa não oferece treinamento . Reportagem da Veja traduz o quadro: modismo + falta de clareza = risco sistêmico .
4.2 A lógica da terceirização cognitiva
Microsoft observou que 75 % dos “knowledge workers” globais recorrem à IA para lidar com volume e velocidade de tarefas . No Brasil, essa terceirização acontece sobre alicerces frágeis: quando o usuário não entende o prompt, o prompt entende o usuário — e o mercado agradece.
5 | Discussão teórico-crítica
Byung-Chul Han (2021) descreve o sujeito contemporâneo como empresário de si, autoexplorado pela positividade do desempenho. A lacuna formativa brasileira intensifica essa autoexploração: o trabalhador improvisa soluções rápidas, gera “valor” algorítmico e adia indefinidamente o enfrentamento de sua própria insuficiência simbólica. Freud lembraria que a repressão do saber gera sintoma; aqui, o sintoma veste avatar com filtro de IA. Bauman chamaria de “modernidade líquida”; Cioran, de “vocação para o desastre”.
6 | Considerações finais
O Brasil digitaliza antes de alfabetizar, conecta antes de compreender e implanta IA onde faltam velhas cartilhas de leitura. A política pública celebra dashboards coloridos enquanto metade da força de trabalho luta para decifrar boletos — literalmente. Se não houver investimento maciço em letramento (funcional e digital), continuaremos exportando cases de inovação para LinkedIn enquanto importamos algoritmos que fazem o básico que não quisemos aprender.
Moral da história: o país que não ensina o verbo “ler” termina conjugando o verbo “terceirizar” para a máquina.
Referências:
ANATEL. Estudo mostra que apenas 30% da população tem habilidades digitais básicas. Brasília: Agência Gov, 17 jun. 2024. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202406/estudo-mostra-que-apenas-30-da-populacao-tem-habilidades-digitais-basicas. Acesso em: 14 jun. 2025.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2022: Taxa de analfabetismo cai de 9,6% para 7,0% em 12 anos, mas desigualdades persistem. Rio de Janeiro: IBGE, 17 maio 2024. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/noticias/40098-censo-2022-taxa-de-analfabetismo. Acesso em: 14 jun. 2025.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 161,6 milhões de pessoas com 10 anos ou mais de idade utilizaram a Internet no país em 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 09 nov. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/noticias/38307-161-6-milhoes-de-pessoas. Acesso em: 14 jun. 2025.
FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL; AÇÃO EDUCATIVA; IPM. Indicador de Alfabetismo Funcional – INAF 2024. São Paulo, 2024. Disponível em: https://alfabetismofuncional.org.br. Acesso em: 14 jun. 2025.
INSTITUTO PÁTRIA EDUCACIONAL. Três de cada diez brasileños son analfabetos funcionales. Brasília: Agência Brasil, 02 mai. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/es/educacao/noticia/2025-05/tres-de-cada-diez-brasilenos-son-analfabetos-funcionales. Acesso em: 14 jun. 2025.
MICHAEL PAGE. Talent Trends 2025 – Compete on Clarity. São Paulo, 2025. Disponível em: https://www.michaelpage.com/talent-trends. Acesso em: 14 jun. 2025.
MICROSOFT. AI at work is here. Now comes the hard part. Work Trend Index, Redmond, 2024. Disponível em: https://www.microsoft.com/en-us/worklab/work-trend-index/ai-at-work-is-here-now-comes-the-hard-part. Acesso em: 14 jun. 2025.
NIC.br; CETIC.br. TIC Domicílios 2024: Livro eletrônico. São Paulo, 2025. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20250512120132/tic_domicilios_2024_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025.
NIC.br; CETIC.br. TIC Domicílios 2024: Resumo executivo. São Paulo, 2025. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20250512115624/tic_domicilios_2024_resumo_executivo.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025.
ROMERA, M. V. Profissionais brasileiros mostram baixo preparo para usar IA no trabalho. Portal Contábeis, 11 jun. 2025. Disponível em: https://www.contabeis.com.br/artigos/71283/profissionais-brasileiros-mostram-baixo-preparo-para-usar-ia-no-trabalho/. Acesso em: 14 jun. 2025.
VEJA. Mais da metade dos brasileiros já usa IA no trabalho. São Paulo: Editora Abril, 29 mai. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/mais-da-metade-dos-brasileiros-ja-usa-ia-no-trabalho/. Acesso em: 14 jun. 2025.
HAN, B.-C. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes, 2021.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
#maispertodaignorancia – porque não há IA que escreva por quem ainda não aprendeu a ler.
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