Avançar para o conteúdo principal

Entre cliques e cadáveres digitais: um relato em primeira pessoa

 



Entre cliques e cadáveres digitais: um relato em primeira pessoa

Abro o navegador, digito mais uma indignação sobre inteligência artificial e, em milissegundos, meu texto atravessa cabos submarinos, roteadores anônimos e servidores que bebem meio litro d’água a cada dúzia de prompts.¹ É impressionante: basta eu apertar Enter em São Paulo para que, quase simultaneamente, alguém em Nairóbi receba a incumbência de decidir se o meu lampejo retórico é ironia legítima, ódio velado ou mero ruído. Nessa coreografia planetária eu ocupo o papel glamoroso de criador; do outro lado da tela, moderadores anônimos encaram decapitações por menos de dois dólares por hora para que o feed pareça civilizado.

O feitiço regulatório

Quando a Comissão Europeia carimbou o Digital Services Act (DSA) e o parlamento britânico brandiu o Online Safety Act (OSA), prometeram que ninguém reinaria sobre a minha timeline. As leis, juravam, apenas “definem salvaguardas e multam quem não cumpre”. Soou reconfortante. Mas logo chegou a circular interna da Ofcom: para fiscalizar o OSA, o órgão contrataria centenas de ex-funcionários de Big Tech — gente treinada exatamente para ver o que nenhum cidadão normal aguenta ver.² Regulador tornou-se moderador, e o Estado, zelador semântico.

Passei a imaginar servidores públicos em Bruxelas folheando memes ofensivos, memes inofensivos, violência espectral, deepfakes catastróficas, tudo em nome da minha segurança. Percebi que o trauma apenas trocava de crachá. O duplo sistema é perverso: o trabalho sujo persiste no Sul Global, agora duplicado nos corredores acarpetados do Norte — e pago duas vezes, primeiro por plataformas, depois pelos meus impostos.

Quem paga a conta de cada “Enter”?

Cada pedido polido que faço ao ChatGPT carrega marcas de um treinamento inicial à base de horrores visuais.³ Moderadores quenianos, colombianos e filipinos mergulharam em pornografia infantil, racismo explícito e vídeos de tortura para calibrar o filtro que hoje me poupa desse contato. Alguns relatam tentativa de sindicalização; outros, diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Enquanto isso, eu celebro a “democratização da IA” e colho likes por reflexões supostamente profundas sobre ética algorítmica.

Até quando o horror não é humano, é hídrico: data centers nos desertos do Arizona ou nas planícies do Cerrado sorvem milhões de litros de água para manter chips refrigerados.⁴ A liberdade cognitiva que aprecio escorre pelo ralo — literalmente.

A autoexploração como modo de vida

Byung-Chul Han observa que, na era da autoexploração, somos empresários de nós mesmos. Eu diria que nos tornamos matéria-prima gratuita para algoritmos famintos: oferecemos tempo, afetos e traumas sem cobrar royalties. Marx sorriria amarelo — o fetiche da mercadoria agora se oculta em GPUs. Produzo-me como mercadoria enquanto terceirizo a dor que sustenta minha vitrine.

Do PDF universal à fratura cultural

As Big Tech juram que seus manuais de moderação, com centenas de páginas, garantem decisões “coesas e neutras”. Contudo, quem julga piadas de humor negro sobre escravidão colonial em Manila? Quem analisa discurso de ódio casteísta na Índia? O PDF é monolingue; o mundo, não. Diante da dúvida, moderadores terceirizados obedecem ao script: “If in doubt, take it down.” Melhor remover a mais do que arriscar multa milionária no tribunal europeu. Assim nasce a sobre-remoção que silencia vozes minoritárias e desalinha debates locais.

Paradoxalmente, o DSA tenta corrigir esse desequilíbrio impondo relatórios de risco, evidence lockers e janelas de remoção de conteúdo em 24 horas. Só que, para cumprir a norma, o próprio Estado precisa de exércitos de leitores de lixo digital. Resultado: ampliamos a demanda por quem tope ver o pior da humanidade em tela cheia, agora com salário digno em Londres, mas sob o mesmo bombardeio psicológico.

Ironia final: liberdade surda

Pergunto-me se é honesto chamar de “liberdade” esse espaço onde digito, sabendo que, do outro lado do Atlântico, alguém rotula vídeos de esfaqueamentos para que eu jamais os veja. Chamamos isso de governança responsável, ética computacional, moderação distribuída. Na prática, estabelecemos uma cadeia de silêncio: eu crio; o outro sangra; o feed sorri. Han diz que ninguém mais escuta ninguém; Cioran sugeriria que nem desespero resta quando a dor é terceirizada em dólares.

O que restaria fazer?

Regular ajuda, mas não basta. A duplicação de trauma comprova que empurrar a sujeira para sob o tapete jurídico só muda o tipo de tapete. Talvez devêssemos reaprender o valor do silêncio — publicar menos, pensar mais, resistir à compulsão de comentar tudo —, ou, ao menos, reconhecer que cada palavra custa trabalho invisível de alguém, em algum fuso onde o amanhecer cheira a café frio e cansaço moral.

Por ora, continuo digitando, cúmplice consciente da engrenagem que me dá voz enquanto rouba sono alheio. Entre cliques e cadáveres digitais, minha liberdade é um eco produzido por linhas de produção invisíveis. E, até segunda ordem, chamarei isso de progresso.


Notas e referências essenciais
  1. News UCR. AI Water Use Could Add Stress to Drought-Prone Regions (2023).

  2. Financial Times. Ofcom hires ex-Big Tech staff to enforce UK Online Safety Act (2024).

  3. Time Magazine. Inside Facebook’s African Content Moderation Hubs (2023).

  4. Business Insider. Massive Data Centers Are Draining Local Water Supplies (2024).

(Demais fontes mencionadas ao longo do texto: Washington Post, The Guardian, The Bureau of Investigative Journalism, Verfassungsblog, DSA Observatory, NYU Stern BHR.)




Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...