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E SE O DESESPERO FOR LÚCIDO? Uma cartografia da decomposição existencial em tempos de positividade tóxica



E SE O DESESPERO FOR LÚCIDO? Uma cartografia da decomposição existencial em tempos de positividade tóxica

JOSÉ ANTÔNIO LUCINDO DA SILVA 

26/06/2025

#maispertodaignorancia


RESUMO

Este trabalho propõe uma análise psicossocial crítica do suicídio enquanto sintoma de uma sociedade que liquefez suas estruturas, saturou o sujeito de desempenho e silenciou o desespero por meio de discursos anestésicos. A partir de pensadores como Émile Durkheim, Albert Camus, Emil Cioran, Søren Kierkegaard, Byung-Chul Han, Zygmunt Bauman e Neury Botega, a investigação percorre os paradoxos da vida contemporânea, onde a única questão filosófica que ainda resta talvez seja: por que continuar? O texto recusa qualquer apelo à autoajuda, abordando o suicídio como fenômeno social, ético e existencial — atravessado pela crise da alteridade, da linguagem e do tempo.

Palavras-chave: desespero; crítica psicossocial; desempenho; existência; lucidez.

1. INTRODUÇÃO

Vivemos um tempo em que tudo pode ser dito — menos aquilo que dói de verdade. A dor subjetiva se tornou censura automática. O desespero foi reduzido a transtorno. E o silêncio virou sintoma social.

Este trabalho não propõe soluções. Propõe feridas. Não oferece promessas — oferece o abismo da dúvida. A proposta é atravessar autores que pensaram o colapso: Durkheim, Bauman, Han, Cioran, Camus, Kierkegaard e Botega. Todos eles, em alguma medida, enfrentaram a pergunta que hoje tentamos desprogramar dos algoritmos: por que viver?

2. A ESTRUTURA QUE DESABOU: DURKHEIM E A MORTE DA MATERIALIDADE

Durkheim escreveu O Suicídio em 1897. Um século de distância — e décadas-luz de solidez institucional. Para ele, o suicídio era mais frequente quando faltava integração social (egoísmo), normas reguladoras (anomia) ou quando o sujeito se diluía no coletivo O suicídio, aqui, é um colapso funcional: o sujeito não se mata porque perdeu tudo, mas porque foi reduzido a tudo o que tem de ser.

 (altruísmo).

Mas Durkheim acreditava em estruturas. Acreditava na família como âncora, na religião como bússola, na sociedade como abrigo moral.

Hoje? A família virou grupo de WhatsApp. A religião é tutorial de propósito no YouTube. E a sociedade… bem, esta te entrega um boleto e uma hashtag motivacional antes de dizer “força, guerreiro”.

As categorias durkheimianas se esgotaram. O suicídio persiste, mas o chão sumiu.

3. VIDA LÍQUIDA, VÍNCULOS EVAPORADOS: BAUMAN E A SOLIDÃO COM INTERFACE

Zygmunt Bauman nos mostra que o que era estrutura, hoje é fluido. No mundo líquido, os laços são frágeis, os vínculos são temporários e o "eu" é um perfil ajustável. A vida é swipe. O amor é download. O sofrimento é spam.

As estruturas que Durkheim acreditava capazes de evitar o suicídio, Bauman mostra que não existem mais — ou, quando existem, são performadas.

E o que sobra? Um sujeito que, se quiser gritar, tem que caber nos 280 caracteres permitidos.

4. A POSITIVIDADE COMO AGRESSÃO: BYUNG-CHUL HAN E O COLAPSO FUNCIONAL

Em Sociedade do Cansaço, Han diagnostica o novo mal do século: não mais a repressão, mas a exaustão. Somos donos de nós mesmos — mas somos também nossos próprios algozes. A liberdade virou obrigação de performar. O desejo virou métrica. A angústia virou KPI.

5. ANGÚSTIA COMO VÁCUO: KIERKEGAARD E A LIBERDADE QUE ASFIXIA

Søren Kierkegaard chamaria isso de angústia diante da liberdade. A vertigem do possível. A tontura do nada.

Mas o que ocorre quando a liberdade vira demanda? Quando o desejo se converte em expectativa de performance?

A angústia, que em Kierkegaard era o campo da transcendência, vira o algoritmo da autodestruição. O desespero moderno não é mais a falta de possibilidades — é o excesso delas.

6. CIORAN: QUANDO A LUCIDEZ VIRA ENVENENAMENTO

Cioran dá o passo que os outros hesitam. Ele não quer salvação, não propõe cura, não oferece conselhos. Ele sabe que pensar demais é adoecer. Que ver demais é desejar o fim.

A morte, para ele, não é fracasso — é legítima conclusão. O suicídio não é problema — é sintoma de lucidez.

7. CAMUS: A REVOLTA QUE SOBRA APÓS O ABSURDO

Albert Camus, em O Mito de Sísifo, também vê o suicídio como questão central. Mas propõe a revolta — não como otimismo, mas como recusa trágica.

Mas que tipo de Sísifo habitamos hoje? Um que responde e-mails. Que sorri no LinkedIn. Que paga boletos e toma antidepressivos. O absurdo está mais presente do que nunca — mas a revolta foi comprada em 10x sem juros.

8. BOTEGA: O DADO QUE SANGRA

Neury Botega nos lembra que o suicídio no Brasil cresce. Em Cuiabá, aumentou 30% num semestre. Mas os números não choram. São gráficos, relatórios, PowerPoints.

A política pública é insuficiente. A medicalização é tapa-buraco.
E a clínica… tenta sustentar o sujeito com uma escuta que o mundo já não tem.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS (INACABADAS)

“O desejo que um dia me moveu para a vida agora me empurra para o fim. O bom e velho desejo virou um velho amigo — só que ao contrário.”

Este trabalho não se encerra. Ele não consola. Ele apenas sustenta — com esforço — o direito de pensar sobre aquilo que a sociedade transformou em ruído.

Se o único grito que ainda nos resta é o da recusa, que ao menos ele possa ser ouvido antes de ser deletado.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BAUMAN, Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

BOTEGA, N. J. Crise Suicida: Avaliação e Manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.

CAMUS, A. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 1996.

CIORAN, E. Breviário de Decomposição. São Paulo: Rocco, 2003.

DURKHEIM, E. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

KIERKEGAARD, S. O Conceito de Angústia. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

SEOHAM, E. A dúvida é o disfarce do desespero. Entrevista concedida em 2023.

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