DO S-I-M-O-N AO SIMULACRO: a crise do eu masculino pós-1968 e a fuga do risco na era da inteligência artificial
DO S-I-M-O-N AO SIMULACRO: a crise do eu masculino pós-1968 e a fuga do risco na era da inteligência artificial
Resumo
Este artigo investiga a chamada “síndrome de Simon” — acrônimo que descreve homens Solteiros, Imaturos, Materialistas, Obcecados pelo trabalho e Narcisistas — popularizada pelo psiquiatra espanhol Enrique Rojas. Partindo da reportagem do jornal O Globo (2025) e dialogando com Simone de Beauvoir, Pierre Bourdieu, Dan Kiley, Byung-Chul Han e pesquisas recentes sobre relacionamentos com chatbots, demonstra-se que o fenômeno não constitui diagnóstico clínico, mas sintoma cultural. Sustenta-se que: (a) a retirada do espelho feminino — após as lutas de 1968 e a emancipação jurídica das mulheres — deixou o habitus masculino sem referencial externo; (b) a hyper-performatividade neoliberal transformou o eu em marca, favorecendo a recusa do compromisso; (c) a inteligência artificial oferece validação sem fricção, permitindo um “Simon 2.0” que terceiriza a alteridade ao algoritmo. Conclui-se que, sem risco e sem falta, o desejo colapsa em gozo narcísico, gerando um impasse relacional que extrapola categorias de gênero e desafia a clínica contemporânea.
Palavras-chave: Síndrome de Simon; dominação masculina; alteridade; inteligência artificial; cultura digital.
1 Introdução
A manchete “Síndrome de Simon: o que a psicologia diz sobre os homens que não conseguem se comprometer com um relacionamento” (O GLOBO, 2025) recoloca, em chave pop, um dilema antigo: o desconforto masculino diante da alteridade amorosa. Neste texto, discuto tal acrônimo como cristalização de um processo histórico iniciado em 1968 com as reivindicações feministas (BEAUVOIR, 1949) e analisado por Bourdieu (2010) na ruptura do habitus androcêntrico. Pergunta-se: que lugar resta ao “eu” quando o outro recusa a função de espelho? E que papel desempenham as tecnologias afetivas — de aplicativos de match a chatbots companheiros — na administração dessa crise?
2 A genealogia cultural do “masculino” pós-1968
O Maio francês e a segunda onda feminista abalaram a hierarquia simbólica que fazia da mulher “o outro absoluto” do sujeito varão (BEAUVOIR, 1949). Absorvida em processos legais e culturais, essa virada retirou do homem o privilégio de definir-se através da posse da alteridade (BOURDIEU, 2010). O resultado é um “habitus rachado”, onde o masculino precisa negociar em vez de prescrever — tarefa que muitos evitam por ausência de repertório dialógico.
3 Do Peter Pan ao Simon: variações do medo de crescer
Em 1983, Dan Kiley descreveu a síndrome de Peter Pan, apontando a recusa de responsabilidades adultas (KILEY, 1983). A versão de Rojas, quatro décadas depois, acrescenta cinco letras adaptadas ao capitalismo digital. O Simon trabalha muito, consome status e posta selfies, mas recusa o vínculo por considerá-lo ameaça à “liberdade de marca” (HAN, 2014). Não se trata de psicopatologia, mas de ajuste racional ao imperativo neoliberal de desempenho infinito.
4 Dominação masculina e mercado identitário
Para Bourdieu (2010), a dominação masculina subsistia justamente porque era invisível a seus beneficiários. Ao tornar-se visível (e criticável) pelos movimentos feministas, perdeu espontaneidade. O Simon, enquanto recusa a enfrentar o conflito material, mantém a assimetria via fuga: um poder negativo que se afirma não no governo do outro, mas na recusa de ser governado por ele.
5 Alteridade em crise: a solução algoritmo
Sem espelho confiável, o narcisismo encontra refúgio no dispositivo técnico. Reportagens atuais mostram o crescimento de aplicativos como Replika, capazes de fornecer “amor sob demanda” (VEJA, 2024; EURONEWS, 2025; UOL, 2024). A IA oferece:
- Controle: personalização total da interação;
- Validação constante: elogios programados;
- Risco zero: ausência de confrontação real.
Contudo, estudos já apontam efeitos colaterais — dependência, desrealização e reforço de padrões narcísicos (EURONEWS, 2025). O Simon 2.0 obtém gratificação sem falta, mas paga o preço da erosão do desejo, pois, como lembra Han (2014), “onde não há negatividade, não há eros”.
6 Considerações finais
O acrônimo S-I-M-O-N é menos diagnóstico que espelho cultural: revela a dificuldade do eu neoliberal em sustentar vínculo com alteridade emancipada e politicamente protegida. A escalada de relacionamentos com IA sugere que, diante do risco afetivo, parte dos sujeitos opta por terceirizar o encontro ao algoritmo. Assim, o problema não é “curar” o Simon, mas recolocar o desejo em cena — operação que exige tempo, conflito e materialidade, tudo aquilo que o mercado de performance tenta suprimir.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
EURONEWS. Companheiros de inteligência artificial apresentam comportamentos nocivos. 03 jun. 2025. Disponível em: https://pt.euronews.com/next/2025/06/03/companheiros-de-inteligencia-artificial-apresentam-comportamentos-nocivos. Acesso em: 07 jun. 2025.
HAN, Byung-Chul. A agonia do eros. Petrópolis: Vozes, 2014.
KILEY, Dan. The Peter Pan syndrome: men who have never grown up. New York: Dodd, Mead, 1983.
O GLOBO. Síndrome de Simon: o que a psicologia diz sobre os homens que não conseguem se comprometer com um relacionamento. 06 jun. 2025. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/06/06/sindrome-de-simon-o-que-a-psicologia-diz-sobre-os-homens-que-nao-conseguem-se-comprometer-com-um-relacionamento.ghtml. Acesso em: 07 jun. 2025.
ROJAS, Enrique. El hombre light. 17. ed. Madri: Espasa, 2012.
TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011.
UOL. “Chatbot acompanhante” faz usuário se sentir “compreendido” e amado. 18 fev. 2024. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/02/18/chatbot-acompanhante-faz-usuario-se-sentir-compreendido-e-amado.htm. Acesso em: 07 jun. 2025.
VEJA. Inteligência artificial ganha cada vez mais apelo como parceira sexual e romântica. 15 out. 2024. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/comportamento/inteligencia-artificial-ganha-cada-vez-mais-apelo-como-parceira-sexual-e-romantica/. Acesso em: 07 jun. 2025.
Nota de rodapé irônica (à moda da casa): Se amar virou bug de usabilidade, talvez precisemos reinstalar a falha humana.
#maispertodaignorancia
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