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Do Mal-Estar à Vigilância Líquida: quando a democracia terceiriza a liberdade ao algoritmo


Do Mal-Estar à Vigilância Líquida: quando a democracia terceiriza a liberdade ao algoritmo

Resumo – Permita-me, em primeira pessoa irônica (mas com rigor de nota de rodapé), exibir o retrato desconcertante de uma democracia que proclama liberdade enquanto terceiriza o silenciamento ao algoritmo. Amarro dados empíricos (índices internacionais e estatísticas brasileiras) à trindade teórica Bauman–Freud–Han: medo convertido em capital, recalque civilizatório em loop digital e excesso de discurso que esvazia o próprio dizer. Ao final, pergunto: se apenas 8 % da população global goza de “democracia plena”, não estaríamos pagando caro por um produto raríssimo – e agora ainda mais taxado pela IA?

Autor: José Antônio Lucindo da Silva 
#maispertodaignorancia
16/06/2025

1 Introdução

Falo-lhes do ponto de vista de um sujeito (eu) que prefere o desconforto à lisonja. A decisão recente do STF de responsabilizar preventivamente as plataformas digitais por conteúdos “antidemocráticos” repõe um velho problema: liberdade promete barulho; o Estado, em pânico, instala silenciadores. Nas próximas páginas cruzarei estatísticas comparadas de democracia com o “mal-estar” que Bauman e Freud diagnosticaram, temperadas pelo cansaço de Byung-Chul Han.


2 Democracia em números, ou a raridade do óbvio

2.1 População realmente livre

Apenas 24 países figuram como full democracies no Democracy Index 2024, abrigando só 8 % da humanidade.

O relatório Freedom in the World 2025 lista 84 “Free” entre 195 Estados – menos da metade.

O V-Dem 2025 atribui nível liberal alto a meros 33 países.

Liberdade de imprensa “boa” existe em 21 nações, segundo a RSF 2024.


2.2 Brasil no espelho

Enquanto sonhamos com democracia robusta, carregamos 7 % de analfabetismo absoluto e amplo analfabetismo funcional, limitando a massa crítica que distinguiria fato de boato.


3 Do mal-estar moderno ao medo líquido

Bauman descreveu a permuta liberdade-segurança como motor do Medo Líquido; a insegurança passou a ser mercadoria de alta rotatividade. Freud, por sua vez, viu o preço psíquico da cultura no recalque pulsional eterno. Han reclama do “excesso de positividade”: produz-se discurso até esgotar o desejo. Quando o STF endossa filtros automáticos para policiar “ameaças ao Estado”, reencenamos o pacto freudiano com a sofisticação líquida de Bauman e a fadiga haniana.


4 Caso brasileiro: censura preventiva algorítmica

O julgamento do art. 19 do Marco Civil amplia a responsabilidade das redes mesmo sem ordem judicial. Resultado imediato: plataformas removem conteúdo “na dúvida” para evitar multas – o X (ex-Twitter) já amargou R$ 8,1 mi em fevereiro de 2025. Executivos do Google admitem publicamente que, frente à ambiguidade, preferirão apagar demais.


5 Economia política do clique ansioso

Estudo no PNAS mostra que postagens contra o “grupo adversário” geram até 4× mais compartilhamentos. Outra pesquisa na Nature revela viés de medo e crime no feed, independentemente de fatos objetivos. O ciclo fecha quando empresas lucram vendendo anúncios sobre o medo que elas mesmas amplificam – e pensadores do MIT já sugerem tributar essa renda publicitária. Para completar, juristas defendem o “direito de conhecer o algoritmo”, sinal de que até a opacidade foi monetizada.


6 Impacto psicossocial e a contradição marxiana

Se “sou o que consumo”, como diria Marx em leitura livre, quem consome medo torna-se refém dele. A classe média alta, munida de capital cultural, dribla fake news; as camadas com menor letramento, não. O resultado é uma democracia que se pretende universal mas delega sua sobrevivência a filtros privatizados que reforçam desigualdades.


7 Conclusão: liberdade em gotas homeopáticas

No mercado da ansiedade, a democracia aparece como artigo boutique: cara, escassa e distribuída em doses controladas por IA. Eu, cidadão pagante, compro o ingresso do espetáculo e descubro que o ingresso não inclui fala, apenas aplauso silencioso. A perversão está servida: clamamos por liberdade, mas premiamos o algoritmo que a retira no exato instante em que tentamos exercê-la.



Referências:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT. Democracy Index 2024. Londres, 2024. 

FREEDOM HOUSE. Freedom in the World 2025: A breakpoint year? Washington, DC, 2025. 

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). Porto Alegre: L&PM, 2011.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

IBGE. Censo 2022: Taxa de analfabetismo cai para 7 %. Rio de Janeiro, 2024. 

MIT POLICY LAB. The urgent need to tax digital advertising. Cambridge, 2024. 

NATURE HUMAN BEHAVIOUR. Crime and its fear in social media. 2020. 

PNAS. Out-group animosity drives engagement on social media. 2020. 

REPORTERS WITHOUT BORDERS. World Press Freedom Index 2024. Paris, 2024. 

REUTERS. Brazil’s top court votes to hold social media platforms accountable for user posts. 11 jun. 2025. 

STF. Informativo: Marco Civil da Internet – art. 19. Brasília, 2025. 

V-DEM INSTITUTE. Democracy Report 2025 – 25 Years of Autocratization. Gotemburgo, 2025. 



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