Consumo, discurso e descarte: anatomia de um eu sem chão
José Antônio Lucindo da Silva – #enxerofeed
#maispertodaignorancia
Resumo
Este ensaio busca articular três camadas do mal-estar contemporâneo: a repressão freudiana, a liquidez identitária de Bauman e a lógica de consumo subjetivo ancorada na desconexão com a materialidade. Através do paralelismo entre O mal-estar na civilização (Freud), Mal-estar na pós-modernidade (Bauman) e os pressupostos materialistas de Marx, argumenta-se que o "eu" pós-moderno não só é produzido como mercadoria, mas performado como linguagem em um ambiente onde o discurso é constantemente esvaziado de experiência real.
1. Do sintoma ao produto: o mal-estar como mercadoria
Freud, ao diagnosticar o mal-estar inerente à civilização, apontava o conflito entre pulsões individuais e a necessidade de repressão para a convivência social. O sofrimento era o custo de se tornar civilizado. Contudo, em Bauman, esse sofrimento muda de estatura: ele é mantido não mais pela repressão, mas pelo excesso de possibilidades de consumo identitário.
O mal-estar hoje é embalado, performado e monetizado. A dor virou narrativa compartilhável. O sintoma não precisa mais ser interpretado: ele precisa engajar.
2. O eu como mercadoria simbólica: do inconsciente ao feed
Na pós-modernidade, o eu tornou-se uma prateleira de performances e declarações. A identidade é gestada mais pelo olhar do outro digital do que pela elaboração com o outro real. A lógica narcisista — que Freud localizava no estágio primário do desenvolvimento psíquico — agora é incentivada como estratégia de mercado: quanto mais visível e desejável for o eu, maior seu valor simbólico.
A contradição se acentua quando a materialidade, com suas fraturas, se impõe. A fome, o desemprego, a violência, a exclusão digital não são filtradas pelo feed. A promessa discursiva entra em colapso diante da realidade concreta. E quanto mais se tenta encobrir essa fratura com narrativas, mais se afunda na alienação.
3. Marx: você é o que consome (e não sabe mais o que é)
Marx nos lembra que toda produção simbólica tem um custo material. A subjetividade não é autônoma: é moldada pelas condições materiais. Se antes se dizia que “você é o que você produz”, agora vivemos a era do “você é o que você consome” — e isso inclui likes, autoajuda, coach, sofrimento editado e até mesmo críticas recicladas como produto.
A alienação atinge seu auge quando o eu se distancia dos hábitos, dos costumes e dos ritmos que constituem a experiência material da vida. Sem referência concreta, o sujeito se dissolve em próteses discursivas: ele performa, mas não elabora; aparece, mas não existe.
Considerações finais
O eu pós-moderno é, em grande medida, um eu em suspensão. Não repousa mais sobre a história, o corpo, os hábitos ou o conflito psíquico. Sua função é circular, agradável, monetizável. Mas essa mesma fluidez o impede de se sustentar. Em vez de existir, ele precisa ser aceito. Em vez de dúvida, ele precisa de engajamento.
Talvez o maior mal-estar não seja mais o de ter desejos reprimidos, como pensava Freud, mas o de não saber mais o que se deseja. E isso, como Bauman e Marx poderiam ironicamente concordar, não é um problema individual. É estrutural.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
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