Avançar para o conteúdo principal

Casais S/A: Quando o amor vira pitch e o prato esfria



Casais S/A: Quando o amor vira pitch e o prato esfria

Autor: José Antônio Lucindo da Silva 

#maispertodaignorancia

Sentei-me para jantar. Celular no bolso, desligado. Estava com minha esposa, familiares, rindo e debatendo sobre as trivialidades e gravidades da vida: política, futebol, o aumento do arroz, a falta de freio nos carros e no bom senso. Aquelas conversas que só fazem sentido porque são vividas e não postadas.

Do outro lado do salão, dois corpos próximos e dois discursos distantes. Um casal. Supostamente juntos, mas cada um administrando sua própria "empresa emocional", ou melhor, seus perfis públicos. A conversa era um tipo de reunião de diretoria da afetividade empreendedora: "Você viu que minha loja postou e você nem compartilhou?", ele dizia. "Mas seu conteúdo é muito chato, amor, só fala de filosofia", ela rebatia, entre gráficos e verdades absolutas de dois mais dois.

Aparentemente, estavam discutindo sobre a ausência de apoio — não no sentido emocional, mas no engajamento digital. “Você não me ajuda! Você tem mais seguidores do que eu!”, ele acusava. Ela retrucava: “Postei sobre a morte daquele ator e você nem viu! Tá vendo como você não liga?”. A afetividade virou feed. O luto virou story. E o amor virou alcance orgânico.

Mas então chegou a comida.

A mesa era redonda. A comida fumegante, bem posta. Eles, de um lado. Eu, do outro, com a minha família e os meus silêncios barulhentos.

E então — cena digna de uma tragicomédia — eles se levantam, se abraçam como se nenhuma acusação anterior houvesse existido, sorriem, e selfie. Uma, duas, três. O vinho aparece em uma, a comida fria na outra. Nenhum garfo encostado no prato. Nenhum prazer além da estética. O prato virou objeto de exposição. O sabor? Irrelevante. A fome? Substituída pela necessidade de parecer saciado.

Passaram-se seis minutos. Não comeram. Postaram. Sorriram. Pediram a conta. E saíram de mãos dadas, como se o toque fosse continuação do post. E ali, na saída, ela ainda passa um guardanapo delicadamente no canto da boca dele — não para limpar, mas para encerrar a performance com um gesto romântico cuidadosamente roteirizado.

Voltei para minha mesa. E o pau estava torando: política, futebol, um comentário mal interpretado. E eu pensei: isso aqui sim é vida. Isso aqui é afeto, é atrito, é riso com farofa, é contrariedade com sobremesa. É comida quente e relações imperfeitas. É o caos que não precisa de filtro.


Referências:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.


HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.


BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.


BECKER, Ernest. A negação da morte. São Paulo: Cultrix, 2007.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...