#maispertodaignorancia
Sentei-me para jantar. Celular no bolso, desligado. Estava com minha esposa, familiares, rindo e debatendo sobre as trivialidades e gravidades da vida: política, futebol, o aumento do arroz, a falta de freio nos carros e no bom senso. Aquelas conversas que só fazem sentido porque são vividas e não postadas.
Do outro lado do salão, dois corpos próximos e dois discursos distantes. Um casal. Supostamente juntos, mas cada um administrando sua própria "empresa emocional", ou melhor, seus perfis públicos. A conversa era um tipo de reunião de diretoria da afetividade empreendedora: "Você viu que minha loja postou e você nem compartilhou?", ele dizia. "Mas seu conteúdo é muito chato, amor, só fala de filosofia", ela rebatia, entre gráficos e verdades absolutas de dois mais dois.
Aparentemente, estavam discutindo sobre a ausência de apoio — não no sentido emocional, mas no engajamento digital. “Você não me ajuda! Você tem mais seguidores do que eu!”, ele acusava. Ela retrucava: “Postei sobre a morte daquele ator e você nem viu! Tá vendo como você não liga?”. A afetividade virou feed. O luto virou story. E o amor virou alcance orgânico.
Mas então chegou a comida.
A mesa era redonda. A comida fumegante, bem posta. Eles, de um lado. Eu, do outro, com a minha família e os meus silêncios barulhentos.
E então — cena digna de uma tragicomédia — eles se levantam, se abraçam como se nenhuma acusação anterior houvesse existido, sorriem, e selfie. Uma, duas, três. O vinho aparece em uma, a comida fria na outra. Nenhum garfo encostado no prato. Nenhum prazer além da estética. O prato virou objeto de exposição. O sabor? Irrelevante. A fome? Substituída pela necessidade de parecer saciado.
Passaram-se seis minutos. Não comeram. Postaram. Sorriram. Pediram a conta. E saíram de mãos dadas, como se o toque fosse continuação do post. E ali, na saída, ela ainda passa um guardanapo delicadamente no canto da boca dele — não para limpar, mas para encerrar a performance com um gesto romântico cuidadosamente roteirizado.
Voltei para minha mesa. E o pau estava torando: política, futebol, um comentário mal interpretado. E eu pensei: isso aqui sim é vida. Isso aqui é afeto, é atrito, é riso com farofa, é contrariedade com sobremesa. É comida quente e relações imperfeitas. É o caos que não precisa de filtro.
Referências:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BECKER, Ernest. A negação da morte. São Paulo: Cultrix, 2007.
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