Cansaço social e tédio gourmetizado: ironias da exaustão contemporânea(ou por que até a sua fadiga virou plano de assinatura)
Cansaço social e tédio gourmetizado: ironias da exaustão contemporânea
(ou por que até a sua fadiga virou plano de assinatura)
José Antônio Lucindo da Silva
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia
Resumo
Entre o “burnout social” ‒ popularizado pela imprensa digital ‒ e o “bore-out” ‒ tédio corporativo elevado à categoria de rótulo premium ‒ abriga-se uma mesma engrenagem de autoexploração. Partindo do artigo de Machado (2025) sobre o “cansaço social” e do ensaio irônico publicado no blog Mais Perto da Ignorância (SILVA, 2025), discuto, em primeira pessoa, como a medicalização pop terceiriza à autocura os efeitos de uma economia que mercantiliza tanto a hiperatividade quanto o vazio. Amparo-me em Byung-Chul Han, Freud e Cioran para argumentar que o diagnóstico mainstream converte sintomas em conteúdo e o descanso em KPI; a solução, vendida como detox digital, preserva intacto o sistema que exige performance infinita. Concluo que admitir a exaustão ‒ sem transformá-la em story motivacional ‒ talvez seja o único gesto subversivo ainda possível.
Palavras-chave: cansaço social; bore-out; autoexploração; ironia crítica; economia da atenção.
1 | Introdução
Descobri que ando “cansado socialmente” no exato instante em que a timeline me ofereceu um anúncio de retiro mindfulness parcelado em doze vezes. Coincidência? Freud chamaria de sintoma com algoritmo por trás. O diagnóstico pop ‒ burnout 2.0 para relações pessoais (MACHADO, 2025) ‒ promete higiene emocional sem desligar o roteador. Já meu necrotério discursivo (SILVA, 2025) prefere rir do paradoxo: travamos entre o incêndio produtivista (burn-out) e a gangorra gelada do tédio (bore-out), ambos abastecidos pelo mesmo motor a likes.
2 | Quando o sintoma vira hashtag vendável
2.1 Marketing do esgotamento
O rótulo “cansaço social” apresenta três vantagens comerciais: cabe num post, culpa o indivíduo e entrega solução plug-and-play (HAN, 2015). O imperativo é simples: se você está drenado, comprou abraços demais. Curiosamente, o remédio chega no próximo carrossel patrocinado.
2.2 A transformação do tédio em experiência premium
No polo oposto, o bore-out gourmetizado oferece retiros de “ócio criativo” com certificação LinkedIn. Vende-se nada fazer, desde que instagramável ‒ prova de que até o vazio precisa gerar engajamento (CIORAN, 2003).
3 | Duas faces, um mesmo espelho
Diagnóstico pop (Machado, 2025) Necrotério irônico (Silva, 2025)
Higieniza a interação e prescreve limites pessoais Aponta que limite sem mudar a engrenagem é cosmético
Sustenta a crença na “produtividade saudável” Denuncia a lógica de autoexploração que converte fadiga em valor
Evita conflito estrutural Ri do paradoxo: excesso e falta servem ao mesmo mercado
Ambas narrativas tratam a fadiga como ruído a ser suprimido; nenhuma ousa puxar o cabo de energia que alimenta a festa de notificações.
4 | Para além do detox: contágio crítico
Aceitar o cansaço sem transformá-lo em brading pessoal exige o que Han (2015) chama de “hiato de negatividade”: espaço onde o desejo ‒ não a demanda ‒ possa balbuciar. Propõe-se, então, trocar o autocuidado-app por silêncio offline (desses que não viram print), permitir-se uma inércia sem métricas e, sobretudo, suspeitar de qualquer receita que não afete o modelo de negócios da atenção.
5 | Conclusão
Entre queimar em burnout social e congelar em bore-out, prefiro a terceira via: desligar o termostato discursivo e admitir que a exaustão talvez seja menos um desvio clínico que um protesto corpóreo contra a produtividade de si mesmo. Luxo verdadeiro, hoje, é não postar que estamos cansados.
Referências:
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2003.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
MACHADO, Lucas. Cansaço social: o novo burnout das relações pessoais e como lidar com ele. Itatiaia, 27 maio 2025. Disponível em:
https://www.itatiaia.com.br/porlucasmachado/2025/05/27/cansaco-social-o-novo-burnout-das-relacoes-pessoais-e-como-lidar-com-ele. Acesso em: 2 jun. 2025.
SILVA, José Antônio Lucindo. Antes de mais nada: dois rótulos na prateleira. Mais Perto da Ignorância, 1 jun. 2025. Disponível em:
http://maispertodaignorancia.blogspot.com/2025/06/antes-de-mais-nada-dois-rotulos-na.html. Acesso em: 2 jun. 2025.
-Frase de bolso: Se até o tédio virou KPI, talvez o verdadeiro luxo seja não postar que você está cansado.
José Antônio Lucindo da Silva
joseantoniolcnd@gmail.com
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Gosto do seu blog.
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